40º capitulo de “PÓ DE ARROZ E JANELINHA”. Iniciativa de Alice Vieira e Manuela Niza.
E pronto, cheio de máscaras, de frascos de gel, casacos , camisolas e mantas—lá me aventurei a ir para a Ericeira. Depois do confinamento, depois de semanas e semanas à janela a olhar para a rua deserta, nada melhor que ir ver o mar.
As pessoas às vezes dizem-me que não entendem por que gosto tanto da Ericeira, com um clima terrível, em vez de, por exemplo, gostar do sol e do mar quentinho das praias do Algarve.
Eu respondo-lhes sempre que, se quisesse água quentinha, não saía de casa e metia-me na banheira.
Mas a Ericeira e o meu amor por ela não tem só a ver com a praia em si, mas com toda a história que ela tem. E jornalista é sempre jornalista, não é?
A primeira vez que aqui cheguei foi em reportagem em Maio de 1995. O meu jornal, como todos os outros, quis mandar alguém fazer uma reportagem sobre os 50 anos do fim da Grande Guerra. E já se sabe, para assuntos históricos cá o Matias está sempre à mão.
Lembro-me que reuni com o chefe de redacção e o director (um assunto destes era de responsabilidade…) para ver o que iríamos fazer, já que todos os jornais iam pegar no assunto.
Foi então que o meu chefe de redacção murmurou :
“Se calhar pegar na história dos judeus talvez não fosse má ideia…
O director disse logo que não, agora os judeus, “dos judeus vão todos falar, caramba”…
“Mas se calhar a história dos meus judeus ninguém conhece…”, atalhou logo o chefe.
Ficámos ambos a olhar para ele, até que ele disse que tinha nascido numa aldeia chamada Santo Isidoro, mesmo ao pé da Ericeira. E que na Ericeira havia histórias de judeus que a maior parte das pessoas não conhecia.
E pronto, lá fui eu para a Ericeira, sem saber absolutamente nada do que ia fazer. Apesar de não estarmos em tempo de praia, só tropeçava em turistas e esses abanavam a cabeça como eu.
Mas o primeiro jagoz que encontrei (não ,não estou a chamar nomes feios às pessoas, é assim que se chamam os nascidos na Ericeira, assim como os lisboetas são alfacinhas, por exemplo) esse, mal abriu a boca, contou-me logo tudo.
Assim.
A seguir ao fim da guerra, muitos países acolheram refugiados. Portugal também. Lembrava-me de ouvir a Patrícia dizer que tinha conhecido uma miúda refugiada, que vivia no Tortosendo, onde ela ia às vezes com os pais. E sabia que tinham ido para Cascais e para o Estoril.
Mas a pequena vila da Ericeira tinha acolhido não um, não cinco ou dez, ou cem—mas três mil.
Três mil judeus alemães que vieram e se instalaram nas casas das pessoas, e conviveram com toda a gente.
E antes dessa vinda, já em 1940, o Cônsul Geral da Polónia em Lyon tinha conseguido fugir e chegar à Ericeira e por cá ficar.
Os antigos donos de cafés onde eu vou agora, ainda se lembravam deles e contavam-me tudo. Claro que a PIDE (PVIDE nessa altura) estava de olho em todos, não podiam sair para mais longe de 8 km da Ericeira E uma dessas senhoras com quem então falei contava-me que era ela que ia ter com a polícia e lhes pedia para levar alguns a Lisboa, ao cinema, “ mas o que é que estas pobres almas podem fazer de mal ?” E às vezes lá iam.
Ao princípio a população estranhou: mulheres que entravam em cafés? Namorados que se beijavam em público e viviam juntos? Mulheres a fumar e sem meias?
Mas isso contribuiu muito para abrir os olhos a esta população dos anos 40… E o convívio foi sempre bom. E segundo todos afirmaram “nunca nenhum deles ficou a dever nada, mesmo quando o Comitée de Acolhimento tardava a dar-lhes as poucas moedas para a sua sobrevivência.
E quando finalmente puderam regressar ao seu país, um ou outro ficou por cá. E os que foram convidavam as pessoas com quem tinham estado para irem vê-los à Alemanha. Nunca se esqueceram.
Agora há poucos vestígios, claro. Uma casa com um nome alemão. Uma placa de azulejo com uma casa e uma rua alemã. A placa na Pensão Morais (que hoje já não é pensão, mas continua a chamar-se assim…) a lembrar a sua vinda.
Depois de tudo isto, digam-me lá se eu podia escolher outra praia?
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