“Irra! Toda a manhã à janela a ver quem passava…”

13ª Crónica de “PÓ DE ARROZ E JANELINHA”. Iniciativa de Alice Vieira e Manuela Niza para se manterem ocupadas durante a quarentena.

Irra! Toda a manhã à janela a ver quem passava (ninguém, pois claro) e agora que ia fazer uma curta sesta é que começa esta algazarra na rua.

Deixa cá ver o que é, não vá ser coisa séria e passar-me ao lado! Era só o que faltava!!

Na rua não há ninguém, mas tá tudo à janela!!! E a cantar a Grândola!!

Ai minha nossa Senhora, querem lá ver que temos outra revolução?!

Mas que grande algazarra!! E tudo desafinado e uns mais à frente e outros a começar… olha aí, está uma coisa que esta rua nunca teve: um maestro! E bem falta fazia agora!!

Mas que foi que lhes deu?

Espera lá… isto que dia é hoje, Maria do Socorro? Sim, que com esta coisa de estarmos todos dentro de quatro paredes os dias são todos Domingo!  Antes, as rotinas de quem passava na rua iam marcando o calendário: quando o vizinho da frente levava os miúdos, ao fim do dia, eu sabia que era sexta feira, o rapaz que trazia as compras cá a casa (e ainda traz, só que agora é quando calha) vinha sempre à segunda… com tudo isto destrambelhado uma pessoa nem sabe às quantas anda.

Resolvi perguntar. Isto porque eu cá sou assim: não sei, pergunto e acabou-se. Virei-me para cima e “psst, psst ó vizinho”. Ele que cantava (mal, tão mal, valha-lhe Deus !!!) a plenos pulmões, não me deu atenção. Mas isto são muitos anos à janela. Fui lá dentro, peguei numa mola da roupa e atirei-lha. Não é para me gabar, mas sempre tive muito boa pontaria. Se bem que não foi minha intenção acertar-lhe em cheio no olho. Calhou!!! Mas o efeito foi o que se queria.

“– Que foi? Por pouco não me cega!”.

Que exagero. Homens!!! Séculos que passem e serão sempre assim. Uns piegas.

Fiz-me de velha mansa, que a vida também me ensinou que às vezes mais vale fazermo-nos de tontas e parvas.

“– O Dr. Vizinho desculpe, mas que é isto?” “– Que há-de ser? É o 25 de Abril!” “-Outra vez???” “-Não senhora, é a comemoração. Como não podemos descer a Avenida, cantamos a Grândola à janela”

Ah… pois está bem, faz sentido.

Fiquei ali até aos últimos vivas a Portugal, à liberdade, ao 25 de Abril. Depois as janelas voltaram a fechar-se e ficou tudo em silêncio como antes.

Lembrei-me dum programa onde perguntavam se nos lembrávamos onde estávamos no 25 de Abril.

Eu estava aqui, nesta mesma casa. Tinha enviuvado vai pouco tempo e os patrões disseram que se eu quisesse podia voltar a ser criada interna e ocupar o meu quartinho de solteira. Embora gostasse muito da minha casinha, disse logo que sim. Afinal eles eram a única família que tinha em Lisboa e a de Fonte Boa de Cima estava longe demais para ser companhia. A bem da verdade o que eu tinha era medo de ficar de noite sozinha. Dei por mim a dormir de luz acesa e rádio ligado muito baixinho. Era um ror de dinheiro em eletricidade. Voltei.

Lembro-me que na noite de 24 os senhores tinham ido ao Coliseu e voltaram tarde. Eu tinha por costume (e obrigação, embora nunca me tivessem dito nada) de ficar a pé até que chegassem, não fosse precisarem de alguma coisa.

Nessas noites aproveitava para tomar um calicezinho de vinho fino e ver um bocadinho de televisão na sala, sempre muito atenta aos passos na escada.

Mas nessa noite eu estava estafadinha de todo. Tinha sido dia de polir as pratas e lavar os vidros e, como se não bastasse, o Sr. Engenheiro tinha-me pedido que fizesse um arroz doce para o almoço, já que iam jantar “a uma porcaria dum restaurante que o Seabra escolheu e já sei que vai ser uma barrigada de fome como de costume!”. O Sr. Engenheiro pelava-se pelo meu arroz doce! Às vezes parecia um catraio a entrar pela cozinha, a cheirar o ar e a lamber a colher de pau, quando pensava que eu não estava a ver. E eu fingia. Sim que não ficava bem a um homem naquela posição andar a rapar o tacho do arroz, mesmo que fosse doce!

Enfim, dizia eu que estava moída e por isso deitei-me vestida sobre a cama com um olho aberto outro fechado e rádio baixinho. Passaram a canção do festival e cantarolei um bocadinho. Gostava muito do Paulo de Carvalho e achei, mais uma vez, que lá fora nos tinham roubado, na Eurovisão. Então não era bem mais bonita o “Depois do Adeus “ do que aquela coisa cantada por quatro palhaços vestidos com umas farpelas que nem no Carnaval?

Os senhores chegaram ainda não era meia noite e eu pude ir finalmente deitar-me. Estava quase a pegar no sono quando começou a tocar a Grândola, que era uma música que eu nunca tinha ouvido na minha vida.  Chamou-me a atenção, porque parecia ter gente a marchar e tinha uma letra linda. Assim a lembrar as modinhas da minha terra.

Nisto toca o telefone, sinto o sr. Engenheiro atender e a desatar a gritar: “Não me digas, não me digas!”

Peguei no robe a pensar que era desgraça pela certa. Quem sabe se outro terramoto como o de alguns anos, que levou toda a gente descomposta para a rua (muitas poucas vergonhas se descobriram nessa noite, benza-me Deus. Até o polícia que vivia na rua de baixo apareceu na nossa, em coirinho como a mãe o pôs ao Mundo. Nunca mais lhe pus a vista em cima. E ainda bem!).

Na sala estava já a senhora, e o Sr. Engenheiro pegou em nós as duas e começou a dançar e a rir muito e a gritar “É desta, é desta. Vem aí a Liberdade”.

Eu não sabia quem era a Liberdade, mas devia ser alguém que não viam há muito tempo e que chegava de longe, para estarem assim tão alegres.

Ver mais aqui: “PÓ DE ARROZ E JANELINHA”