14ª Crónica de “PÓ DE ARROZ E JANELINHA”. Iniciativa de Alice Vieira e Manuela Niza para se manterem ocupadas durante a quarentena.
Até há uns quatro ou cinco anos nunca falhei um 1º de Maio. Mas agora as artroses já não me deixam. Por isso uma das coisas que mais me irritam é dizerem-me que o que importa é a juventude de espírito. Como se a juventude de espírito me ajudasse a descer e a subir escadas… E então as escadas da casa da minha filha que mais parecem a rota do Calvário. Não que eu vá agora lá muito mas enfim…O Vasco é que tem essa mania. Coitado, pensa que isso me anima. Ele até é bom rapaz, e atura a Teresa há vinte e tal anos, o que não deve ser nada fácil , que a minha filha tem cá um feitiozinho que Deus me livre. Palavra que não sei a quem é que ela sai, mas a mim e ao pai não é de certeza. Quando eu digo isto, o Isidoro remata logo “eu sempre soube que ela era filha do padeiro”, e rimos como se tivéssemos 20 anos. Deve ser essa juventude de espírito de que fala o Vasco.
Mas então o 1º de Maio. Ai, isto as recordações também são como as cerejas…Recordo logo o primeiro 1º de Maio, em 1974. Os meus pais e a minha gente lá da Arruda não se metiam em política. Eram do tipo “a minha política é o trabalho e dou-me muito bem com isso.”
Quando vim para Lisboa e casei com o Isidoro é que ele me abriu os olhos.
E esse primeiro de Maio foi um dia único. Nunca mais vi nada parecido. Um polícia que andava por ali só dizia para o colega, “isto, palavra de honra, isto nem na Senhora de Fátima”
A Teresa tinha então cinco anos e a Luísa três. Ainda pensei em levar as duas connosco para a manifestação, nunca mais iriam esquecer uma coisa daquelas, mas depois tive medo, a confusão ia ser muita, e no meio daquela gente toda ia ser complicado.
Não arrisquei.
Então a minha sogra ficou com a Luísa e nós levámos a Teresa.
Não que ela estivesse muito para aí virada. Amuou, bateu o pé, berrou “não quero ir, não quero ir…”, até que o pai lhe disse qualquer coisa ao ouvido que a fez acalmar. Devia tê-la subornado a chocolates e gelados Rajá, claro . (Só muito mais tarde soube que ele lhe tinha segredado “ou paras de chorar ou levas uma tareia que até danças”. O Isidoro conseguia ser muito persuasivo)
Antes de sairmos ela ainda deu uma corrida ao quarto , e pronto, lá fomos.
E foi aquele mar de gente de que todos nos lembramos.
A Teresa não estava a ligar muito àquilo, agarrada às minhas saias cantarolava
“o pretinho Barnabé
tiro liro liro
a saltar quebrou um pé
tiro liro lé..”
(Hoje já ninguém canta esta música, claro..)
Estava muito calor, ela arrastava-se, começou a cantar mais alto
“salta agora num pé só
tiro liro liro
salta agora num pé só
tiro liro ló
Mas aquilo não a consolava. De repente mete a mão na algibeira, tira a chucha e enfia-a na boca. E eu que a tinha escondido tão bem…Por mais que eu fizesse, não havia meio de ela largar a chucha. A Luísa nunca lhe pegou mas esta…
Faço de conta que não vejo e lá vamos—até que um homem, no meio daquela gente toda, passa por nós, dá uma gargalhada e diz-lhe:
“ Ó camarada, inda de chucha? És a vergonha do sindicato”
E sem que pudéssemos fazer nada, tira-lhe a chucha da boca, atira-a para longe e afasta-se ainda a rir.
Ela ficou tão apardalada que não disse nem ai nem ui
E nunca mais pegou numa chucha.
Obrigada,camarada. E viva o 1º de Maio.
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