9 ª Crónica de “PÓ DE ARROZ E JANELINHA”. Iniciativa de Alice Vieira e Manuela Niza para se manterem ocupadas durante a quarentena.
Hoje abri a janela mais tarde.
A “culpa” foi do telefonema do João. Coitadinho, devia estar numa pausa e precisava de falar e como eu, a bem dizer, também só falo com os meus botões, estivemos para ali um ror de tempo a dar à língua.
Sim, bem sei que o telemóvel é móvel! Ele diz-me isso vezes sem conta. Mas que querem? Burro velho não aprende línguas e telefonar é na sala, ali sentada à mesinha do telefone, do outro, o de plástico, ou lá o que é, preto com uma roda e buraquinhos com números, mudo há anos, mas ainda a impôr o respeito de ter uma mesa só para ele.
“-Está lá? Quem fala?”.
Estou mesmo parva de todo! Quem havia de ser se só ele tem este número?
Quis saber como estava, se comia bem, se tinha quem me trouxesse as compras a casa…recomendou-me várias vezes para que não saísse à rua.
Dei-lhe uma resposta meio torta:
“- Olha, estava a preparar-me para ir ao Condes logo à tarde e em calhando ainda dava um salto ao Parque Mayer à noite”.
Não deve ter entendido metade do que lhe disse. Sabe lá ele o que era o Condes ou o Parque Mayer, quando ainda era o Parque Mayer. Sim, que aquilo agora é uma coisa que nem é carne nem peixe.
Que eu já lá não vou há uma eternidade, mas não me parece que tenha melhorado…
Perguntei-lhe pelo trabalho “-Quando falaram que aí o Presidente ou lá o que é, aquele que nunca viu um pente na vida, tinha sido salvo por um enfermeiro português ainda pensei que fosses tu…”,
“-Não avó. E é Primeiro Ministro. Aqui não há Presidente, há Rainha.”
Pois claro, que disparate, Maria do Socorro! “- Pois, mas devias ter sido tu, que agora toda a gente te conhecia”, “
Ó avó, que mais dá salvar a vida dum Primeiro Ministro ou duma outra pessoa qualquer?
“Sempre lhe fui dizendo que sim senhora, que era tudo muito bonito, mas que aqui toda a gente fala do Luís de Aveiro e ninguém conhece o João do Barreiro. Essa é que é essa!
Ele riu muito, fez muitas recomendações e desligou.
Vim para a janela a matutar no desperdício de termos tanta gente jovem longe. Já é mania nossa! Volta e meia, mandamos fora uma data de jovens. Depois queixam-se que só temos velhos.
Mal comparado foi o mesmo com a guerra no Ultramar. Jesus, que desespero!
Cá em casa nem tanto, que, para desgosto da minha senhora e para meu alívio, nem uma nem outra tinha filhos. Mas não havia família que não andasse sempre com o credo na boca, temendo o dia em que o seu menino tivesse que se apresentar às sortes, que é como quem diz ir à inspecção e ficar apto.
Esta minha rua, não sei se já disse, sempre foi de gente fina. Bem, fina, fina, como lá prós lados do Restelo ou do Estoril não. Mas tinha o seu Juiz, o seu Médico, o seu Major… entre engenheiros e doutores, esta rua era muito bem composta.
Ora o tal Major era um gabiru de se lhe tirar o chapéu! Homenzarrão de farto bigode, sempre fardado, de pingalim na mão, embora depois tenha sabido que era médico e de infantaria. Na volta, as vezes que tinha estado mais próximo dum cavalo tinha sido nas corridas do Campo Pequeno.
Mas voltando ao que interessa. Pois este Major tinha fama de “livrar os rapazes da tropa”. Ao que parece fazia parte do grupo que dizia se os mancebos (era assim que chamavam aos rapazes em idade de ir matar turras) estavam ou não aptos para embarcar rumo a África “ e em força “ como dizia o Dr. António de Oliveira Salazar. Um pé chato e cinco contos e o rapaz estava livre que nem um passarinho. Às vezes bastava o envelope, que a doença ele lá lha arranjava.
Lembro-me como se fosse hoje: mães entrando à socapa, fazendo quase fila, para pedir por tudo que o sr. Major livrasse o seu filhinho de ir matar ou ser morto lá fora. Davam o que tinham e o que arranjavam sem ter, vinham de longe e de perto, sempre mulheres, que homem que é homem não pede favores desses. Chegavam até a beijar-lhe as mãos, vi eu com estes olhos que a terra mais dia menos dia há-de comer.
Outros com menos sorte e sem conhecimentos, lá embarcavam às centenas, os olhos muito abertos, uns porque era a primeira vez que viam o mar e outros porque tudo aquilo lhes parecia um pesadelo.
Embora como está bem de compreender, não fosse para a sala ver televisão com os senhores, havia dois programas que me deixavam assistir da porta, sentada numa cadeira da cozinha: o Zip-Zip e as Mensagens de Natal quando chegava a dezembro.
O que eu me ria com um e o que chorava com o outro!
Aquilo era uma dor de alma! Víamos uns rapazes, que quase nem barba tinham, a andar no mato, carregados que nem burros e de arma na mão, e depois ouvíamo-los a falar para a televisão.
Coitadinhos, alguns nem conseguiam dizer palavra, a voz cheia de lágrimas, a saudade e o medo que os tornava novamente meninos…quase sempre começavam por falar na mãe, como se quisessem voltar à segurança do colo.
“Para a minha querida mãe, o meu pai, os meus irmãos… eu estou bem… um Natal muito Feliz e um Ano novo cheio de … aqui é que era o caneco, porque lá lhes tinham dito que era bonito dizer “cheio de prosperidade”. Ora a maior parte não sabia ler nem escrever, a palavra era difícil e as saudades e a emoção, já se sabe, entaramelam a língua. O Ano Novo vinha, pois, quase sempre cheinho de “propriedades”.
Mas todos acabavam da mesma forma: “Adeus, até ao meu regresso”.
Ai o mal que aquilo me fazia! Pois se alguns tinham já regressado dentro de caixões fechados, desembarcados dos mesmos navios que levariam outros para a guerra “lá fora”.
Era assim que dizíamos. Aquela era uma guerra “lá fora” contra os turras. Só muito mais tarde vim a saber que era como se chamava aos terroristas. Eu pensava que era o nome dos pretos. Pois já sei que agora não se diz assim, mas … sou velha de mais para dizer de outra maneira. E não são as palavras que mudam as intenções e a maneira como vemos os outros.
Eu cá, que eu saiba, não me parece que tenha feito algum dia grande distinção. Logo eu, que sou morena como uma cigana! Eu e toda a gente de Fonte Boa de Cima e das aldeias em redor.
Só os senhores da cidade podiam dar-se a o luxo de ser brancos, não tinham que trabalhar de sol a sol.
O que o bicho fez das pessoas! Logo ela que tanto criticava umas e outras por “não termos mais nada que fazer que ver quem passa”.
Espera lá que já tas digo… “Ora boa tarde, quem é uma flor!”
Ela olhou para cima com um ar espantado. Querem lá ver que pensava que eu já estava morta ou metida nalgum lar. Cruzes credo!!! Cada vez que vejo as imagens na televisão agradeço e rezo pela alma da minha senhora, que me deixou de meu, para que não tenha que ir para um depósito de velhos à espera da ceifeira. Para mais agora que parecem tordos a morrerem uns atrás dos outros.
“-Boa tarde. Não a tinha visto!”
Pudera. Eu estou cá em cima.
Estivemos um bocadinho a dar à língua. Coisas sem importância, que nunca tivemos nem muito nem pouco a dizer uma à outra.
De repente vi passar a cachopa com um saco de verga em direcção à casa do Dr. Matias (mas de que raio será ele doutor?).
“ – Ó D. Alzira, sabe quem é aquela rapariga que ali vai?”
“- Então é a Rosa, a filha da Conceição que era porteira e costurava para fora” (e ela que não soubesse! Não ia à janela, mas desviava as cortinas, que eu bem sei, e nada lhe escapa. Olha quem!!!
Agora sim reparo que é ela. Aos anos que não a via!
“- Pois é natural. Ela esteve muitos anos lá prá outra banda. Só há pouco tempo voltou aqui à rua. ” (Eu não digo? Sabe tudo…)
Fiquei a pensar na miúda que brincava na rua à apanhada com os outros todos e que de repente deixou de sair de casa. Foi quando a PIDE levou preso o pai. Ninguém queria ter contacto fosse com quem fosse que estivesse debaixo do olho da polícia do Salazar! Nem mesmo os miúdos.
Não sei que foi feito do homem. Era jovem, bonito. Parece-me que trabalhava num jornal mas não tenho a certeza. Nunca mais o vi.
Como tantos outros…
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