“Diário de uma avó e de um neto…Desconfinados”
sexta 09 de abril 2021
Querida avó,
Como estás? Como foi a tua Páscoa?
Esta semana com o desconfinamento, e o “novo normal”, temos tido tantas coisas para fazer que não tivemos tempo para nos dedicarmos ao nosso “Diário”.
Depois de praticamente três meses fechado em casa, a ter reuniões “on line”, ontem tive uma reunião na Baixa. Depois da reunião, decidi vir a bater perna pela Avenida da Liberdade acima. Como diria a minha avó Clementina,“ até me nasceu uma alma nova”.
Será que os mais novos já ouviram histórias sobre o antigo Passeio Público que existia naquela localização? Aquele que foi o primeiro jardim público de Lisboa. Muitos julgam que o nome da Avenida tem a ver com o 25 de Abril, mas o nome é anterior à revolução dos cravos.
Havemos de voltar a esta Avenida para falar dos belíssimos edifícios como: Éden, Condes, Teatro Tivoli, Hotel Victória, antigo Diário de Notícias e tantos outros.
Adoro esta Avenida de inspiração no “boulevard” parisiense. Ai que saudades de voltar a Paris, percorrer as magnificas ruas, monumentos, jardins e tudo o resto. Mas esse dia ainda está longe! Nada como a nossa Av. da Liberdade, para fazer um belo “bain de futilité”. Sempre dá para lavar as vistas.
No entanto Av. da Liberdade não são só futilidades! Dei comigo a admirar o Monumento aos Mortos da Grande Guerra que homenageia os combatentes portugueses na 1ª Guerra Mundial.
Como sabes, este Monumento celebra o aniversário da Batalha de La Lys, que aconteceu há precisamente 103 anos.
9 de abril de 1918 foi um dos dias mais mortíferos na história militar de Portugal. Numa só manhã, perto de 400 portugueses morreram, muitos mais foram feridos e o número de prisioneiros rondou os 6600.
Deixo esse tema para ti, uma vez que já não vais para nova, e estás sempre a contar a contar histórias do teu tio relacionadas com este dia.
Quem andou recentemente a colocar flores e a dar entrevistas junto do Monumento aos Mortos da Grande Guerra, foi o André Ventura e a Marine Le Pen… Recuso-me a comentar mais do que isto!
Quem também andou na guerra foi Joaquim Simões Costa, avô do Nuno Rogeiro. O Nuno e o irmão escreveram o livro “O nosso avô foi à guerra” Descobriram o diário de campanha do avô combatente: o treino em Tancos e a partida de Lisboa, a perseguição de submarinos, os combates aéreos, as ilusões e desilusões face a aliados e adversários, a crueza da guerra, as luzes de humanidade e romance, os dilemas da convalescença.
Um século é muito tempo! No entanto, existem datas, e factos, que jamais podem ser esquecidos pelas gerações atuais, para não corrermos o risco que história se repita!
Por falar em Guerra e Paz, ainda não foi neste confinamento que li a magnifica obra do Tolstói.
Todos os anos, do outro lado da Avenida, em frente ao Monumento aos Mortos da Grande Guerra, costuma estar o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa e (convidados) a receberem os responsáveis por cada Marcha de Lisboa. Todos os anos menos o ano passado e este ano: devido á pandemia não existem marchas.
Veremos se existem os casamentos de Santo António.
Bom desconfinamento. Já sabes, na esplanada mas com máscara!
Acima de tudo muita paz!
Bjs e bom fim de semana.
Querido neto,
De cada vez que chega o dia 9 de Abril, lembro-me sempre do meu tio Joaquim.
Porque todos os anos era a mesma coisa. Se eu acordava primeiro, batia-lhe à porta do quarto e só dizia “9 de Abril, Grande Guerra!”. E ele ficava muito contente. Se era ele a acordar primeiro (o que era raro…) fazia ele o mesmo comigo.
Desde criança que eu sabia a história toda, e papagueava-a do princípio ao fim quando me pediam:
–” Ó Bi (como sabes era assim que me chamavam em miúda, e ainda há muitos amigos que me chamam assim, mas isso fica para outro dia)—” o que aconteceu no dia 9 de Abril de 1919?”
E eu :
–A batalha de La Lysl
E ele:
–E o que foi a Batalha de La Lys?
A partir daí ninguém me calava. E as pessoas achavam imensa graça, e riam muito…Imagina, rir de uma batalha em que tinha morrido uma data de portugueses! Eu, realmente, devia ter muita graça.
É claro que hoje, com a História que se aprende nos liceus, a gente mais nova nem imagina o que isso foi.
Claro que não te vou dar nenhuma aula, mas vou contar-te o essencial, que eu quero que os meus netos sejam pessoas cultas.
Então no dia 9 de Abri de 1917, em plena Grande Guerra, deu-se uma grande ofensiva do exército alemão na Flandres. Foi a primeira participação do exército português, que tinha chegado há dias. E as pessoas depois disseram que tinha sido o maior desastre militar depois de Alcácer Quibir (isto espero que saibas o que foi…) . Mal armados, mal fardados, sem nenhuma preparação prévia, sem saberem como agir…foi uma chacina.
No meio dessa chacina, quando os soldados portugueses receberam a ordem de retirar, um deles desobedeceu à ordem e ficou sozinho na trincheira, enfrentando as colunas alemãs que se atravessavam no seu caminho—permitindo assim a retirada de portugueses e ingleses para posições defensivas na retaguarda.
Depois saiu da trincheira, andou vagueando pelos campos, fazendo fogo esporadicamente, aproveitando algumas balas que ia encontrando no chão. Andou por ali quatro dias até encontrar um major escocês que se estava a deixar ir na corrente de um enorme lamaçal. Claro que o salvou e seguiram ambos até ao quartel. E foi este major que contou ao general tudo o que o soldado tinha feito.
–Chamas-te Milhas, mas vales milhões! –terá dito o general
E foi assim que o soldado Aníbal Augusto Milhas, de Valongo, passou a ser conhecido por Soldado Milhões—o único soldado raso português a ser condecorado com a Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito.
O meu tio Joaquim teria nessa altura uns 15 anos, e por pouco não foi parar às trincheiras. Mas ia acompanhando tudo o que se passava—o que devia ser difícil, sem internet, sem televisão, e sem telemóvel…Talvez por isso o Soldado Milhões tenha sido sempre o seu herói.
E enquanto vivi lá em casa, neste dia descíamos sempre a Av.da Liberdade, até à estátua dos Combatentes da Grande Guerra, para depositar um ramo de flores.
(E só um parêntesis para te contar uma coisa, sobre a Av. da Liberdade. Era na altura em que se estavam a fazer obras para instalar o Metro, O Solnado tinha uma rábula, já não sei de que revista, em que fazia de Rosa Araújo, que tinha feito a avenida. E o refrão era assim: “Fiz a avenida/rasgada, comprida/qual estrada florida/ num hino à claridade / No fim de tudo/ cavaram, furaram/ /para abrir um canudo / e foi-se a Liberdade”. Nunca percebi como é que a censura deixou passar…)
Mas adiante.
Quando eu já era adulta (vivi com o meu tio até aos meus 21 anos) até gostava da cerimónia… Porque antes telefonava sempre a uma amiga e combinávamos um fim de tarde no Parque Mayer, que então era bem divertido.
Espero que o Soldado Milhões nunca se tivesse sentido ofendido.
E a lição acaba aqui. Mas se quiseres saber mais, tenta ver o filme “ Soldado Milhões”, de 2018, realizado pelo meu amigo Jorge Paixão da Costa e Gonçalo Galvão Teles, e produzido pela minha amiga Pandora Cunha Teles, candidato a uma data de prémios… (Os meus amigos só fazem coisas boas…).
Vai lá beber um café –mas, apesar do desconfinamento, tem cuidado!
Bjs e bom fim de semana.
Outros capítulos aqui: “Diário de uma avó e de um neto … Desconfinados”