“Florbela Queiroz”

“Diário de uma avó e de um neto em casa…Confinados”

sexta – 10 de fevereiro 2023 – Florbela Queiroz.

Querida Avó,

Não resisto, tenho que partilhar contigo!

Fui às compras. Como evito ir frequentemente ao supermercado, aproveito para trazer o carro cheio de coisas. Estou naquele vai e vem carregado com as compras, do carro para o elevador, do elevador para o carro, diz-me a porteira:

– Depois do almoço, quando o meu Leopoldo saiu de regresso ao trabalho, ainda me disse “ nunca pensei que a Florbela Queiroz já tivesse 80 anos!”

Sério D. Lurdes? Agora que fala nisso, realmente, há imenso tempo que não oiço falar da Florbela Queiroz. Este país não é para velhos!

– Perguntei-lhe como é que ele sabia e ele disse-me que tinham dado na televisão. Eu devia estar a lavar a louça e não ouvi. Mas também, se tivesse ouvido, era coisa que não me interessava.

– “Parabéns à prima”, resmunguei eu, e voltei ao meu serviço

 – Nunca gostei muito da Florbela Queiroz, mas o meu Leopoldo, apesar de ser mais novo, foi sempre caidinho por ela—e julga que eu não sei. Às vezes, logo a seguir ao nosso casamento, levava-me ao teatro para a ver. Eu lá ia, e via como os olhinhos dele até brilhavam quando ela entrava em cena. E a força com que aplaudia…

– Lembro-me que naquela altura ela teve de ser escoltada pela polícia a cavalo quando fazia compras no Chiado, tal era a quantidade de gente em volta dela.

A Lurdes quando começa a falar ninguém a cala. Eu continuo-o no vai e vem com os sacos. Louco por chegar a casa.

Nisto, a Lurdes vê a porteira do prédio ao lado a sacudir o tapete da entrada e chama-a.

– Oh Maria Antónia, estava aqui na conversa sobre a Florbela Queiroz que faz anos hoje.

– Ai sim Lurdes? Que idade faz a franjinhas?

– 80!

– Já há muito tempo que não oiço falar dela. Coitada! Não teve muita sorte na vida. Não há dor maior do que a de uma mãe que perde um filho!

-Nem me digas nada Lurdes, coitada da Florbela.

Termino de descarregar o carro e digo-lhes: “Boa tarde. Cuidem-se!”

Mas estavam tão concentradas na conversa que nem me ouviram, ou fingiram não me ouvir. Ainda as ouço:

– Disseram-me que ela tinha casado por procuração. Era na altura em que ela cantava uma canção chamada “Eu sou a mesma”. Oh Maria Antónia, tu não imaginas, quando a Florbela aparecia em qualquer lugar, era ver toda agente a cantar “Eu estou na mesma!, Eu estou na mesma!”

Nisto reparam que eu ainda estou junto do elevador. Devem ter visto a minha cara de espanto. Nunca tinha ouvido nada disto.

Diz a Lurdes:

– Pela sua cara vejo que não conhecia esta história. Gosta tanto de histórias do passado e do presente, fica a saber mais uma.

Voltam à conversa:

– Coitada, não quero mal nenhum à mulher, teve uma vida cheia de altos e baixo, e parece que agora está sem trabalho. Mas isso, infelizmente, quase toda a gente está. E ela sempre se pode agarrar às cartas.

– Mas olha, foi condecorada pelo Presidente da República!

– Palavra de honra, este nosso Presidente Marcelo às vezes tem cada ideia…

– Bem, deixa-me ir tenho muito para fazer.

– Também eu! Mas tu que me chamaste para me contar que a Florbela Queiroz faz anos.

– Diz que também é especialista em tarot. Quando isto do bicho acabar havemos de marcar uma consulta. Entre muitas outras coisas, precisamos saber quando nos reformamos.

– Ninguém sonha em ser porteira. Olha, foi o que nos calhou.

E pronto avó. Agora que já te contei tudo vou continuar a trabalhar.

Diz lá que viver aqui não é animado…

Bjs. Fica bem

Querido neto,

Realmente, que animação essa que me contas.

Já que me falaste de atores esquecidos apetece-me falar dos: VELHOS ACTORES

Estes têm sido tempos muito complicados para todos.

Na Cultura tem sido uma catástrofe.

Há atores que gostariam de “morrer em palco”, outros que chegam a uma altura e preferem retirar-se.

Lembro-me, por exemplo, da grande Amélia Rey Colaço a ter um AVC  no meio do palco. Terrível. Eu penso que deve ser difícil largar uma profissão que se ama claro, mas é necessário.

E dei comigo a pensar na quantidade de actores e actrizes, que todos nós nos habituámos a ver e de que hoje já ninguém se lembra.

Durante anos a fio encheram plateias, ouviram ovações, viram o público de pé, foram chamados vezes e vezes ao palco, foram  capas de revistas,  deram autógrafos, deram entrevistas a propósito de casamentos, separações, nascimento de filhos, mudança de penteado, rivalidades com colegas, projectos novos, projectos velhos, digressões pela província.

Era no tempo em que os jornais e revistas tinham muitas páginas para encher, e os jornalistas pouca matéria para lá pôr, porque a censura, sempre atenta e vigilante, não autorizava grandes voos noutras direcções.

Era o tempo em que ainda não havia televisão e as distracções eram poucas.E quando a televisão entrou nas nossas vidas, a 4ª feira era sempre dia de teatro– o que popularizou aquela frase “gosto de teatro, quando é bom” . Governávamo-nos com a prata da casa, e parecia que todos gostávamos muito dela e que ela duraria para sempre.

Não durou. Os tempos mudaram, mudaram os gostos—e os palcos  e os ecrãs  foram-se enchendo de vozes cada vez mais novas, de rostos cada vez mais jovens, de corpos cada vez mais ágeis.

E não tenhamos dúvida: o público é um bicho ingrato e de memória curta.

Que fazer dos artistas que envelhecem, neste país que os expulsa à primeira ruga, ao primeiro cabelo branco? Não há no teatro e na televisão papéis para velhos? Claro que há—mas aí vão-se buscar actores jovens para os maquilhar de velhos.

E, no entanto, todos temos para com eles  dívidas de gratidão que não pagaremos nunca.

Por aquelas gargalhadas que nos fizeram dar no dia em que nos sentíamos de mal com o mundo.

Pela enxurrada de lágrimas que nos provocaram no dia em que o nosso peito parecia rebentar e não sabíamos o que fazer

Por tudo aquilo em que nos fizeram acreditar nos breves momentos de uma fala, de uma canção, de um gesto.

Os melhores dias da minha infância e adolescência, em Lisboa, passei-os sentada nas plateias do Nacional, do Avenida, do Monumental, do Parque Mayer. E,à saída, metia-me pelo corredor que ia dar aos camarins e lá ficava de conversa com eles. Eram seres mágicos.

Vi os actores novos ficarem velhos. Vi os velhos ficarem muito velhos.  A alguns ainda tive tempo de lhes dizer o quanto lhes devia. A outros, nem isso.

Agora o espectáculo é frenético. Agora a vida é frenética.

Num dia achamos os artistas indispensáveis. No outro desaparecem da nossa vida e nem damos pela sua falta.

Que bom que temos no ativo nomes como a Manuela Maria, o Ruy de Carvalho … e tantos outros.

Este pais TAMBÉM é para velhos!

Como muito bem referiste no teu texto, a Florbela tinha uma música muito famosa com o titulo “Eu sou a mesma”

No entanto, depois de perder o único filho que tinha, jamais será a mesma.

Beijos querido neto.

Obrigada por dares voz aos mais velhos!

Outros capítulos aqui: “Diário de uma avó e de um neto em casa Confinados”