“Diário de uma avó e de um neto”
Quarta, 14 de julho 2021
Querida avó,
Como estás? Hoje está cá uma caloraça
Escrevo-te o “Diário” de hoje a partir do Centro de Vacinação, em Lisboa, onde vim levar a 2ª dose da Pfiser
Como sabes abomino a pasmaceira. Não vou ficar aqui a olhar para o vazio, nem a contemplar quem está ao meu redor. Tenho mais que fazer!
Fui recordar o lindo Postal do Dia que o teu amigo Luís Osório publicou no passado dia 22 junho.
Nesse Postal do Dia, Luís Osório escreveu:
“Alice Vieira foi abandonada
(mas soube oferecer ao mundo o que nunca teve)
1.
Alice Vieira editou “Rosa, minha irmã Rosa” há mais de 40 anos. Depois desse primeiro livro seguiu-se outro e outro e outro.
Tornou-se, por mérito próprio, o nome maior da história da literatura infantil e juvenil portuguesa das últimas décadas.
E tantas e tantas vezes deslocou-se graciosamente a escolas e a todos os lugares onde existiam crianças para a ouvir falar sobre livros.
Sobre sentimentos.
Sobre os dias que viveu.
Sobre personagens, futuro e esperança.
2.
Alice foi abandonada pela mãe quando tinha 15 dias.
“Não era pobre nem mãe solteira” como um dia a Alice comentou na minha página, a mãe deu-a a quem melhor pudesse cuidar dela.
E foi à sua vida.
A Alice ficou sem mãe, desamparada de afetos. Cresceu com tios-avós. Sozinha na maior parte do tempo. Sem os abraços que merecia. Que merecem todas as crianças. Sem a rede que todas precisam tinha tudo para falhar…
Mas não falhou!
Mais do que isso, ofereceu ao mundo o que lhe faltava. E dedicou-se à escrita e a crianças a quem influenciou, amparou e ofereceu rede. A rede que nunca teve. O afeto e amparo que nunca teve.
Ousou caminhar contra o destino. Preferiu construir-se rodeada de pessoas por todos os lados, de amigos, de gerações de portugueses que começaram a ler por terem caminhado nos seus livros.
3.
Há pessoas assim. Não tantas como precisaríamos, mas há. Passam pela vida como se voassem acima dos nossos pés. Atrevem-se a fazer tudo ao contrário do que imaginávamos ser possível. Mandela saiu da prisão e em vez de ódio ofereceu ao mundo compaixão.
Alice Vieira nunca teve uma mãe e em vez de lhe terem nascido ervas daninhas sobrou-lhe uma enorme vontade de poder ser mãe de todas as crianças. Uma espécie de mãe feita de palavras, feita de perguntas para perguntar e de sonhos para serem sonhados.
Não há destino melhor do que aquele que tiveste, querida Alice. Mesmo que chores todos os dias até à eternidade.
LO”
Que texto incrível! Como tantos que o Luís escreve diariamente.
Até hoje, tem 418 comentários e 824 partilhas.
Apesar de, ao longo dos teus mais do que 40 anos de obra literária, já teres contado a tua vidinha toda, inúmeras vezes, nas entrevistas para toda a comunicação social, ainda existe imensa gente que não conhece estes fascículos da tua vida.
Penso que, resumidamente, devias partilhar essas histórias com os leitores do nosso “Diário”. O que te parece?
Bom, já terminei o recobro, está na hora de me ir embora. Tenho mais que fazer.
Toda esta dinâmica correu muito bem. Para o que se fala nas notícias … com imensas filas, pessoas horas ao sol …
Em 1.30h estou de volta a casa. Ainda me deram duas garrafas de água e umas bolachas de água e sal (na 1ª dose era garrafa de água e maçã).
Espero o Luís Osório te inclua no 2º volume do livro ”30 portugueses, 1 País”.
Agora vou pôr gelo no braço, como me mandaram.
Só me apetece fazer uma versão nova para a canção da Ana Malhoa: “Tá vacinado; Tá todo vacinado; Tá vacinado; E não lhe falta nada… “ Só falta o Certificado (do qual irei tratar mal chegue a casa).
Amanhã dou-te notícias.
Bjs
Querido neto
Sabes que não gosto de falar de mim, há coisas tão mais interessantes…
Mas aí vai alguma coisa, só para não dizeres que não aprovo o tema que escolheste. E também porque me dá agora muito trabalho escolher outro. Ahahaha
Os franceses têm um provérbio que diz “à quelque chose malheur est bon”, ou seja, a desgraça serve sempre para alguma coisa. E Goethe escreveu um dia: “tudo o que não nos mata, torna-nos mais forte”. (O que o pessoal por cá, mesmo que nem saiba quem ele foi e sem grandes poesias, diz “o que não mata, engorda”.) Desde muito cedo que aprendi isso.
Quando as velhas tias me chamavam, eu cerrava as mãos e dizia para mim “matar não me matam, por isso vamos lá!”
A minha mãe deu-me com 15 dias de idade, pura e simplesmente porque não tinha nenhum instinto maternal, e o que ela queria era divertir-se: “eu só quero pó de arroz e janelinha” (frase que ainda hoje a família inteira cita e que tu conheces bem porque já escrevemos uns textos sobre isso.) E quando os meus irmãos nasceram, também os deu. Deu-nos a tios-avós–e o meu pai, um industrial mais velho 19 anos do que ela, esteve sempre de acordo. Uma das coisas que ainda hoje recordo é ser miúda e, sem dizer nada às minhas tias, telefonar para casa dos meus pais a perguntar se podia lá ir almoçar e ele responder: “cá em casa não há almoço para ti.”
Os tios avós eram velhos, às vezes morriam. Lembro-me de ter para aí uns 5 ou 6 anos e estar, com os meus irmãos, na casa de um deles com os meus pais e todos os que nos criavam, porque um dos tios tinha morrido e ninguém queria ficar connosco.
Mas como te disse, não gosto de falar muito da minha infância. Comparada com outras, garanto-te que foi o paraíso.
E a verdade é que também me deu muitas coisas boas.
Acima de tudo, deu-me um optimismo inquebrantável. Havia um camarada meu dos jornais, que já morreu, e que costumava dizer que eu era uma militante do optimismo
Ensinou-me também que, se queremos muito qualquer coisa, nós é que temos de lutar por isso, e que do céu não cai nada a não ser a chuva.
Ah, e teve ainda uma coisa extraordinária: todos os meus velhos tios estavam metidos na política até ao pescoço. Quando saíam para conspirações e essas coisas (sempre falhadas, claro) as velhas empurravam-me e diziam-lhes que não me queriam aturar sozinhas o dia inteiro. Então eles levavam-me para a Leitaria Persa, no Rossio (durante anos que foi uma loja de artesanato. Agora é (imagina) uma loja de roupa interior), que era o centro das conspirações. Sentavam-me no meio deles, ensinavam-me frases muito instrutivas, género “morra Salazar”, e depois diziam-me que eu nunca podia dizer aquilo em voz alta. Eu pensava que era por causa das tias—e nunca disse, com medo que sobrasse para mim. Depois sentavam-me em cima do balcão da leitaria, enquanto a conspiração continuava.
Lembro-me muito bem que uma manhã entrou lá um casal americano. Em finais dos anos 40 não havia tantos turistas como há hoje, e os empregados dos cafés só sabiam falar português—e mal. Os americanos só queriam umas cervejas –mas ninguém os entendia. Sentada em cima do balcão, eu olhava para aquilo muito admirada, porque eu achava que toda a gente falava inglês desde bebé, como eu. Como ninguém respondia ao americano, eu disse ao empregado o que é que eles estavam a pedir. Foi uma alegria! Os americanos a falarem comigo, eu a falar com os americanos—e antes de se irem embora deram-me uma moeda de 1 dólar. Ainda a guardo—e digo sempre que aquele foi o meu primeiro ordenado.
Mas voltando à minha infância complicada. Também fez de mim uma mãe completamente diferente para os meus filhos. Levava-os comigo para toda a parte, antes de irem para cama havia sempre tempo para conversarmos, “que coisas boas nos aconteceram hoje? E más? “. Tivemos sempre uma relação extraordinária.
Acho que isto tudo foi o melhor que a minha má infância me deu.
Espero que a segunda dose da vacina não te tenha dado problemas. O meu filho e a minha nora apanharam a segunda dose, tudo bem, e dois dias depois tiveram febre alta! A minha nora chegou a ter 40 graus… Mas também passou depressa.
Fica bem—mas tem cuidado. E promete-me que não voltas a escolher este tema para o nosso “Diário”.
Bjs
Outros capítulos aqui: “Diário de uma avó e de um neto.”