“Diário de uma avó e de um neto”
Quinta-feira, 08 de julho 2021
Querida avó,
Como corre essa estadia pela Ericeira?
As coisas em Lisboa estão “de gritos e apitos”.
O cerco volta a apertar por causa da Covid, já falam em novo Confinamento… “Está uma confusão dos diabos”.
Uma coisa é estar fechado em casa no Inverno, mas no Verão? Ninguém merece! Quer dizer, por cauda de uns celebrarem os Santos, os jogos de futebol, a festarolas e afins … pagamos todos. “Anda tudo ao Deus dará´”.
Tu deixa-te estar por aí, pois aí é que estás bem. Até eu retirava-me para a Ericeira mas tudo “Custa os olhos da cara”.
Uma vez que nos devemos manter por casa tenho aproveitado para ler. De momento estou a ler o livro “Sem Rei Nem Roque”. Um livro sobre as origens das expressões populares escrito pelo João Palma e com magnificas ilustrações do Rodrigo de Matos.
No “Diário” de hoje já referi algumas expressões. Uns sabem o significado, outros “Andam à nora”. Também sabemos que “dourar a pílula” se refere à tentativa de melhorar a aparência de uma situação ou coisa menos boa, mas o que poucos sabem é como nasceu a expressão. Tu sabes porque é que, quando se atribui responsabilidades a outros, se diz, “eles que são brancos, que se entendam”? E, já agora, porque é que, quando se é malsucedido ou não se consegue cumprir determinado objetivo, se usa expressão “dar com os burros na água”?
Mas se há livro de expressões que gosto, é o teu: “Expressões com História” que junta a mestria das tuas palavras e as magnificas ilustrações de Ricardo Cabral.
Cada vez que folheio o livro, sinto-me como o Pedro (o personagem central do livro). Há sempre uma explicação para as frases que usamos mesmo sem saber porquê.
Mas o importante mesmo é saber porque as empregamos. Nada como saber a origem das coisas caso contrário ficamos “Sem perceber patavina”.
“Ponho as mãos no fogo” em como diariamente passas horas nas esplanadas à beira mar!
Bjs não fiques “A ver navios”.
Querido neto
Agora por tua causa ando só a usar expressões com história. Sim, é o nome do meu livro. Nesse livro só escrevi quarenta expressões, fiquei de escrever um segundo volume, mas ainda não houve tempo. Mas queria muito escrevê-lo, porque agora até há expressões muito mais modernas.
Há dias, por exemplo, passou na minha frente uma miúda carregadíssima de embrulhos. Sorriu e exclamou:
“Pareço o preto da Casa Africana!”
Continuou a andar mas virou-se para trás e disse:
“Que eu nem sei o que isto quer dizer, a minha avó é que está sempre a repetir isto…”
Estive para lhe explicar, mas ela já ia rua abaixo.
Claro que, nestes tempos, só os mais velhos é que ainda sabem do que se trata—um boneco preto, carregado de caixas, à porta de uma loja que se chamava Casa Africana. Hoje já não há preto nem Casa Africana—e mesmo que houvesse, o politicamente correcto nunca deixaria que se dissesse tais coisas.
Lembro-me muito bem quando decidi escrever esse livro. Eu estava num café, e alguém exclamou :
“Caramba! Aquela é mesmo uma Maria-Vai-Com-As -Outras! “—e seguiu-se uma asneirola, que eu aqui não reproduzo porque estou a escrever num jornal sério.
Ri-me, e tentei explicar, ao senhor o que aquilo queria dizer mas ele não acreditou numa palavra que eu lhe disse. Para quem não sabe, aí vai a explicação: quando a família real vivia no Brasil, D.Maria I acabaria por enlouquecer e não podia ir sozinha para lado nenhum. Por isso tinha de andar sempre acompanhada. Daí o “Maria vai com as outras.”
Falas-me em “ver navios”, por estar na Ericeira.
O único navio de que às vezes as pessoas de cá se lembram tem uma história muito triste. Trata-se do navio “Angoche”, que em Abril de 1971 partira de Nacala em direcção ao Porto—e nunca lá chegou. Afundado, a tripulação, na sua maioria aqui da Ericeira, desapareceu toda sem deixar rasto. E 50 anos depois, ainda ninguém sabe o que aconteceu.
E vou apanhar sol enquanto há…
Bjs
Outros capítulos aqui: “Diário de uma avó e de um neto.”