“Eu nem quero acreditar…”

32º capitulo de “PÓ DE ARROZ E JANELINHA”. Iniciativa de Alice Vieira e Manuela Niza.

Eu nem quero acreditar…

Depois de muitos dias ao telefone a tentar convencer o meu Joãozinho a ficar cá em casa quando viesse agora passar uns dias de verão a Portugal— liga-me ele a dizer que o hospital onde trabalha não deixa ninguém vir a Portugal. E parece que o próprio governo não aconselha.

Bonito serviço.

Primeiro era ele que estava hesitante, porque  dizia que tinha casa, e não queria estar a incomodar-me. Depois lá lhe fiz ver o disparate que isso era, aqui tinha quem tratasse dele, e até me podia dar um jeito na televisão, que não me parecia estar lá muito bem. Aí ele animou-se mais, e disse-me que aproveitava para pôr na televisão uma coisa com um nome esquisito, net qualquer coisa, que  me fazia ver todos os filmes e mais um, recostadinha no sofá—o que, para quem tem de estar enfiada em casa, ajuda muito.

E agora diz-me que não pode.

Eu estou tão farta de estar sozinha aqui dentro de casa que dou por mim a ter saudades de tudo.

Juro: estou cheia de saudades de Fonte Boa de Cima, das tareias que a minha mãe me dava, dos rapazes a chamarem-me coisas feias e a atiraram-me terra para a cara. Nem quero pensar mais nessas coisas senão ainda acabo por sentir saudades do paspalhão do meu Faustino, sempre bêbado e a ressonar.

Há espelhos cá em casa e, por isso, não tenho ilusões a meu respeito. Nunca fui bonita nos dias da minha vida. Bonita era a Floripes, no nosso tempo de miúdas em Fonte Boa de Cima. Às vezes penso no que terá sido feito dela…Deve ter casado com um gabiru qualquer, daqueles muitos que andavam sempre à roda dela.

Mas há mais feias do que eu…

Olha, a Quitéria… Feia como uma noite de trovões—sem ofensa para os trovões…– mas cheia de dinheiro. Uma coisa compensava a outra.

Acho que ainda é viva…Deve ter quase cem anos, penso eu…Costumava vê-la lá em Fonte Boa de Cima, toda aperaltada e sempre muito chorosa do seu Álvaro que, segundo ela, tinha sido a pessoa que mais a amara na vida.

Nós,quando ouvíamos aquilo, corríamos para casa e ríamos à gargalhada…

Em Fonte Boa de Cima toda a gente conhecia a história da Quitéria e do Álvaro. A Quitéria, podre de rica,  terras, uma fábrica, dinheiro no banco,  tudo herdado de pais e avós, de quem era a única descendente. O Álvaro, sem ter onde cair morto, muito mais novo do que ela,  mas lindo de morrer e com um parlapié que convencia toda a gente.

Um dia,numa roda de amigos, o Álvaro veio com um estranho plano.

–Ó malta, vejam lá se isto não é uma grande ideia. Vou casar com a Quitéria.

As gargalhadas ouviram-se cá fora, mas que foi que te deu? Que maluqueira é essa?  Ela podia quase ser tua  mãe, e feia, feia.……

Mas o Álvaro já tinha o plano todo na cabeça.

–Vão ver: ela já não deve durar muito, sei lá se tem alguma doença, mas é capaz de ter, já ouvi alguém dizer que o coração dela não andava muito bem… Casamos. E não a vou deixar parar um segundo: vamos a Espanha, vamos a Paris, vamos ver as Cataratas do Niágara, vamos andar de gôndola em Veneza—a desgraçada não aguenta tanta viagem, tanta movimentação, dá-lhe um treco e cai morta—e cá o Je fica-lhe com a fortuna toda. Não é bem pensado?

Era, realmente.

Casaram. Ele tratava-a como uma princesa. Passaram as férias em Benidorm—e daí foram conhecer as outras grandes praias de Espanha.  Subiram à Torre Eiffel, caminharam por todo o Museu do Louvre, viram todos os castelos do Loire (aí ela começou a dizer que estava ligeiramente cansada, e ele começou  a esfregar as mãos), quando estavam diante das Cataratas do Niágara, ela pediu-lhe que regressassem. Já não era uma criança e, além disso, agora ainda queria ter tempo para conhecer bem Portugal.

–Claro, minha querida, Portugal também merece ser visitado…

Voltaram a Portugal.  No aeroporto ele alugou um carro para irem para Fonte Boa de Cima—e depois dali logo se via.

Meteram-se à estrada, ambos muito felizes.

Numa curva um tipo vinha fora de mão, chocaram de frente—e o Afonso chegou morto ao hospital..

Desde aí ninguém aturava a Quitéria—a chorar pelo seu Afonso, que a tinha levado a conhecer meio mundo só para a fazer feliz… E como ela tinha sido tão feliz com ele…

Bom, eu não queria um Afonso na minha vida, mas mesmo com a minha idade, não se arranjava para aí um velhote para me fazer companhia?

A vizinha Perpétua parece que se dá muito bem com o seu  Isidoro.

Dava-me jeito, por acaso. Vou para a janela, (só me falta o pó de arroz ..)  ver como estamos de paisagem.

Ver mais aqui: “PÓ DE ARROZ E JANELINHA”