“Estive à janela a apanhar este fresquinho da tarde”

28º capitulo de “PÓ DE ARROZ E JANELINHA”. Iniciativa de Alice Vieira e Manuela Niza.

Estive à janela, a apanhar este fresquinho da tarde e a ver já algum movimento na rua.

Ainda me estou a rir com a fúria da Perpétua… Aquilo foi de estar tanto tempo metida em casa… Daqui a bocado chega aí e desatamos os dois a rir da palermice. Porque ela não é nada assim. Por isso é que eu me meti com ela. Tem fama de saber a vida de toda a gente, mas não se mete com ninguém.

O que ela gostava—e muitas vezes já o disse—era de convidar cá para casa os nossos vizinhos e cada um contar a sua vida. Não por bisbilhotice mas para entendermos o que as pessoas já passaram. De bom e de mau. Porque ela assegura—e tem um bocado de razão—que ninguém deste prédio deve ter tido uma vida tão cheia como a dela. Os bailes da chita, as Noivas de Santo António, a viagem de núpcias, a viagem ao estrangeiro para ver a Luísa… Nada mau…

Aproveito ela não estar cá e vou fumar um cigarrito. Eu sei, eu sei que me faz mal—ao pé dos meus netos nunca fumo—mas às vezes apetece-me, e meia dúzia de cigarros também não me hão-de fazer assim tanto mal.

Desde aquela história da endoscopia—ainda hoje coro de vergonha—a Perpétua insiste muito para eu ir ao médico de vez em quando, visita de rotina, mas pronto, com a minha idade é preciso ter cuidado com a saúde.

Aqui há tempos, ainda o bicho não tinha atacado e os médicos estavam livres, lá fui ao centro de saúde. O meu médico não estava e fui atendido por outro que eu nunca tinha visto.

Fez-me uma data de perguntas e desculpou-se, mas o Dr. Fonseca tinha metido férias e ele é que tinha ficado com os doentes dele.

Perguntas e mais perguntas, medida da tensão, um olhar para o écran do computador a ver as minhas fichas todas, e o meu processo todo, e agora suba ali para a marquesa para eu o apalpar, e por aí fora.

Depois vieram as perguntas sacramentais:

-Fuma?

-Muito pouco Sr. Dr. Há dias em que fumo uns  dois, três cigarritos, mas há dias em que não fumo nada…É mais por gosto do que por vício, Sr.Dr..

Resmungou qualquer coisa que não entendi e teclou lá umas coisas.

-Faz dieta?

Aí engasguei-me. Com os petiscos da Perpétua, quem é que podia fazer dieta…

-Quer dizer.. Não como feijoada todos os dias, claro, mas assim uma dieta, mesmo uma dieta a sério, cozidos e grelhados, isso não faço não, Sr.Dr.

Ele olhou mais uma vez para o meu processo…

-Já calculava…

O tom não agoirava nada de bom.

Pegou numa receita e começou a escrever, sempre sem dizer nada.

Depois parou, afastou-se um bocadinho da secretária e lá começou a ditar a sentença.

-Então é assim… O senhor não está mal, mas vai-me prometer que não volta a pegar num cigarro—e leva aqui as indicações para uma dieta que eu quero que cumpra a rigor.

Fez uma pausa.

-Porque é assim: hoje o senhor não está mal, mas quando chegar aos 80 é que vai ver…E depois vai-se lastimar por não ter feito dieta e essas coisas. Porque não deve pensar só nestes dias, mas no que vai ser a sua vida daqui a anos.  Então não pode fazer nada…

Outra pausa.

-Estamos entendidos?

-Estamos ,Sr.Dr.

Vesti o casaco, e tive pena que a Perpétua não tivesse ido comigo.

Para me consolar.

Ouvir uma coisa destas, não é fácil.

Entrei em casa e ela estava enfiada em novelos de linha branca a fazer uma colcha para a Teresa.

-Então?

-Então, tens de passar a fazer peixe grelhado e cozido para mim todos os dias

-Porquê?

-Porque o Sr.Dr. disse que se eu quero chegar aos 80 tenho de ter muito cuidado.

-Chegar aos 80? Mas tu já tens 85…

-Ele não me perguntou…

Desatámos a rir – e pelo menos com a certeza que ainda posso comer cozido e arroz de pato por mais alguns anos…

E neste momento ouço a chave na porta.

A Perpétua entra, com um sorriso de orelha a orelha.

-Desculpa lá, não sei o que me deu há bocado. Foi de estar aqui metida tanto tempo… E sabes o que me aconteceu? Eu ia pelos passeios e só dizia para mim “quero ir para casa, eu quero ir para casa”… Já não estou habituada a sair, como dantes. Isto é que é uma vida… Bom,mas vamos lá ao trabalho.Deixei bacalhau de molho, vamos lá fazer um bacalhau à Zé do Pipo…

Vou até à janela.

De vez em quando a Perpétua tem ideias de génio

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