“Durante muitos anos, o Dia de Reis foi recordados com muita infelicidade!”

Nesta segunda parte da conversa que tivemos com o Ruy de Carvalho, foram partilhados momentos divertidos e emocionantes. Ficamos ainda a saber como é o feitio das mulheres desta família.

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No caso da avó Rute, são memórias muito presentes porque até há poucos anos esteve viva e chegaram a viver na mesma casa. Que imagem mais forte tem da sua avó Rute?

Ruy: Quando se zangava era gira!

Henrique: Quando se zangava…

Paula: Atirava o baralho de cartas!

 

Porquê?

Henrique: Atirava tudo o que tinha à frente dela…Agarrava nas coisas e atirava!

Ruy: Era temperamental!

Henrique: Mas nunca acertava…

 

Era de temperamento sanguíneo, era?

Henrique: Era, se se zangava, era!

Ruy: Era uma extraordinária pessoa, mas tinha mau génio! Foram 53 anos de mau génio, que eu fui casado 53 anos!

 

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Sei que era daquelas pessoas que não gostava de não ter razão.

Ruy: Não gostava nada de não ter razão! O marido dela também não, são do mesmo signo portanto eram iguais, não gostam de não ter razão.

Paula: Mas as cartas pelo ar é a cena mais deliciosa que existe.

João: Nós casámos todos com pessoas assim!

 

Escolheram todos esse tipo de parceiro?

João: Sim, que a minha também tinha as orelhas arrebitadas!

Ruy: A minha mulher era formada em História e Filosofia e era bailarina também. Por isso nos conhecemos no Conservatório.

 

Mas antes disso, independentemente de se terem passado mais de 100 anos, o que são os valores que o Ruy bebeu dessa família ancestral e que continuam a ser os valores que perpassam para a família que o  Ruy tem agora? Para o Henrique, por exemplo?

Ruy: Uma grande honestidade, uma forma de estar na vida com muito carácter… Eu vou contar uma história engraçada de família: O meu pai veio da guerra com 29, 30 anos, era capitão na altura e chegou a Vila Real todo bonito, todo fardado. Chegou à estação de Vila Real, o meu avô recebeu-o, abraçaram-se, felicitaram-se, o meu pai puxou da cigarreira acendeu um cigarro, o meu avô deu-lhe um estalo na estação, o meu pai apanhou o comboio para Chaves e foi-se embora. Estiveram zangados uns anitos, era uma família muito respeitável e muito feudalista, mas com uma grande união. Os meus tios, cada um foi uma coisa, um foi da polícia, outro foi alfaiate e o outro foi oficial do exército…

João: Uns eram republicanos, outros eram monárquicos.

 

Uma grande mistura!

Ruy: Mas havia uma democracia na família, gostávamos uns dos outros mesmo com políticas diferentes, que é uma coisa que não acontece agora. Agora odeiam-se pessoas, que é um disparate completo, é uma estupidez, não há razão para isso. A ideologia não devia separar as pessoas dessa maneira.

Ruy: Não, de maneira nenhuma, mas separa! Ideologia ou futebol!

 

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Sei que durante muito tempo o Dia de Reis não foi um dia muito feliz para a sua família, para a sua mãe…

Ruy: Morreu o meu irmão nesse dia… Eu era muito pequenino, tinha 4 anos. Ele era actor no Teatro Nacional. Morreu 15 dias depois de lhe ter rebentado o apêndice em cena, tinha ele 22 anos. Eu estava em África com a minha mãe e com a minha avó, que estava a morrer, e a minha mãe recebeu o telegrama exactamente na altura em que a mãe morreu, e quinze dias depois do meu irmão ter morrido. Foi a única vez que concordei que um homem batesse numa mulher: o meu pai deu um grande soco à minha mãe porque ela queria matar-se, com o desgosto. E o meu pai não deixou… Não deve ter sido nada levezinho porque o meu pai era grande, era um homenzarrão.

Paula: A minha avó tinha um filho com 4 anos – o meu pai – e portanto o meu avô não podia de maneira nenhuma deixar que ela se matasse com um filho tão pequenino. Ela esteve uns tempos sem ligar nenhuma ao filho, como se com a morte do outro filho morresse também a mãe.

Ruy: A minha mãe, que na altura tinha para ai uns 46 anos, em poucos meses ficou com o cabelo todo branco. A minha irmã também era actriz, trabalhou muito tempo nos Parodiantes de Lisboa. Era filha do primeiro casamento da minha mãe…aliás, sou filho de um casal de viúvos: eu tinha irmãos de um lado e do outro.

 

Com esse quadro que já nos pintou e com o facto da sua mãe ter sido pianista, com a alma virada para as artes…

Ruy: E de ter jeito para representar, que a minha mãe também representava. Mas era amadora!

 

Suponho então que não tenha sido difícil a sua escolha de profissão…

Ruy: Não, o meu pai até gostava mais disso que a minha mãe, era apaixonado pelo teatro e por música.

 

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Mas o seu pai tinha o gosto pela restauração, não era?

Ruy: Isso era mania, era só para gastar dinheiro. Não tinha jeito nenhum, a minha mãe é que o ia salvar sempre. Um dia descobriu que tinha um cozinheiro que fazia pasteis de massa tenra com ovos, e disse ao meu pai: ponha-o na rua que ele é ladrão.

 

Mas conte-nos como entrou no teatro.

Ruy: Eu pisei o palco pela primeira vez na Covilhã, porque o meu pai estava colocado lá como militar e a minha mãe era professora de piano…

 

Mas era pequenino?

Ruy: Oito ou nove, fiz a instrução primária na Covilhã e fui colega de carteira do (António) Alçada Baptista. Havia uma senhora que perguntou se eu queria entrar na História da Carochinha e foi essa a primeira vez que pisei o palco.

 

O que é que se lembra de ter sentido nessa primeira experiência?

Ruy: Muitos nervos e uma medalha que me deram 60 e tal anos depois…

 

Deram-lhe uma medalha?

Ruy: Que eu tinha mordido na altura, uma medalha da Nossa Senhora da Conceição em ouro. Deram-ma para não ficar nervoso e eu trinquei-a. Sei que depois a tal senhora deixou aquilo à família, passados uns anos deram-me a medalha que ela deixou para me ser entregue.

 

Ter essa recordação é giro! Mas estávamos a falar de família e o Ruy contou já várias vezes, inclusivé no seu livro “ Os Anjos Não Têm Asas”, o difícil que foi conquistar a família da sua mulher Rute…

Ruy: Exatamente, conquistar e reconquistar. Uma família que não me queria de maneira nenhuma ficou com uma amizade por mim sem limites. Passaram a ser muito meus amigos, pessoas de quem eu gostava muito.

João: Um deles era o meu tio, era o dono do “NÃO”!

 

Era?!

Ruy: Tinha uma casa muito conhecida, a “Casa das Lãs” na Rua da Conceição, em Lisboa.

João:  A primeira coisa que ele dizia era “NÃO”. “Ó tio, queres comer qualquer coisinha?” “NÃO!”

 

Dizia sempre não?

João: Era. Passados cinco minutos: “ Olha, dá lá aí só um bocadinho para eu provar!”, e depois comia.

 

Há um sketch do Gato Fedorento que é assim!

Henrique: O meu avô é assim…

João: O meu pai ganhou esse hábito, “ah, não quero!”, “não, não vou comer nada…”

Ruy: Sou mais ou menos, não sou tanto.

Henrique: Quase todos nós temos esse hábito!

João: Convém, quando dizemos muitas vezes que sim acham que somos parvos.

 

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(risos) Mas Ruy, o que acha que foi o factor determinante que fez com que alguém que o rejeitava,  passasse a aceitá-lo? O que é que o Ruy teve de provar?

Ruy:  Que era uma pessoa bem formada e que andava cá na vida como um cidadão normal.

 

Ah! «Isso de ser actor está muito bem, mas…»

Ruy: É que há alguns que corrompem a profissão, não é?

Sem dúvida, e é preciso ver que a sua mulher era de uma família aristocrata e que portanto não era qualquer senhor que servia para cortejá-la.

Ruy: Mas depois também era bailarina, não nos esqueçamos. A família não sabia, só a minha avó é que sabia que ela dançava. Namorámos 9 anos.

 

No texto que a Rute escreveu (no seu livro), ela falou nessa posição que o Ruy tinha perante ela. Ao fim e ao cabo, não foi só o seu namorado: era o seu protetor, era o seu irmão, era o seu amigo.  Era aquela pessoa que a acompanhava para onde quer que ela fosse, para ter a certeza de que ela estava segura.

Ruy: Exatamente. E só fomos marido e mulher no dia do casamento. Fizemos questão de não avançar nunca! Mas foi difícil, até porque montámos a casa juntos, ela fez coisas para a casa, fez tapetes, fez muita coisa…

 

Fizeram o ninho juntos…

Ruy: Durante 3 anos, pelo menos.

Sempre não dando aquele passo, guardando para depois?

Ruy: Claro que mal pudemos…nasceu logo a filha.

 

(risos) Calculo!!!

Ruy: Mais tarde, eu fui para África com o Vasco Santana em 1955, tinha o João três meses. E quando voltei, ele não me queria ver ao lado da mãe na cama. «Quem será aquele gajo que está ali»… Tinha ele 1 ano e tal.

 

Ah, queria a mãe toda para ele. Há recordações que têm e que são muito curiosas. Uma delas é de quando voltava para casa levar os seus filhos a passear de carro e vê-los deitados no banco de trás a contarem estrelas…

Ruy: Lembro-me de vir directo do Teatro Experimental do Porto, em 1962/63, para estar com eles. Sei que vim 76 vezes a Lisboa! E eu dizia assim “Ó Rute, vamos levar os meninos a dar um passeio de automóvel?”, “Oh não, deixe-nos ficar aqui!”. Porque queriam era ver televisão! Entravam no carro, e 10 minutos depois estavam a dormir.

Paula: Contávamos as estrelas e os carros: ele contava os Minis, eu os Volkswagens.

Ruy: E os desastres,  sabiam onde tinham sido todos.

Paula: Isso era eu!

Ruy: Ali houve um grande desastre, ali houve outro grande desastre.

Henrique: Ainda hoje é assim…

João: Ela é a primeira cavaleira do Apocalipse!

Ruy: Havia um sítio perto de Leiria onde a minha filha adorava passear, o carro fazia umas curvas…

João: Onde havia aquelas pontes…

Paula: Onde morreu o Carlos Paião.

Ruy: Vês, sabe quem morreu aí!

Henrique: Vês!

Paula: Morreu aí o Carlos Paião e um colega meu da rádio.

 

Então devia ser uma estrada perigosa?

Paula: É uma estrada velha. É o meu espírito de jornalista! Eu explico: quando nós éramos miúdos não havia tantos carros como agora, e portanto havia muito pouco movimento em alguns sítios. Apesar de haver grandes filas, no caminho para o Porto havia zonas com filas intermináveis…

Ruy: Alenquer era muito complicado, depois havia um bocadinho que era a Recta das Raparigas… Depois em Rio Maior a gente ficava horas para subir aquela coisa até lá a cima.

Paula: Já posso falar?

Ruy: Fala, filha, fala que o teu falar tem graça!(risos)

Paula: Era normal, como eram poucos carros, que os grandes acidentes marcassem a memória. Hoje em dia há tantos acidentes e tanto carro que a gente já não liga nenhuma.

João: O mais mórbido era eu!

Paula: Não, tu eras muito mórbido mesmo.

João: Eu não sei bem que idade é que tinha, tinha para aí 3 ou 4 anos, já falava bem, e acho que isto aconteceu na praia das Maçãs ou nas Azenhas do Mar. Um dia os meus pais dão comigo…acho que foi nas Azenhas do Mar, não foi?

Ruy: Não posso falar! (risos)

João e Paula: A do poste!

Ruy: Ah, a do poste!

João: Estava um homem que subiu a um poste para arranjar as linhas de telefone. Ele subiu lá acima com aqueles ganchos e esteve lá…

Ruy: Mucifal?

Paula: Foi no Mucifal.

Ruy: E ele estava a olhar lá para cima…

João: O homem esteve lá em cima um quarto de hora, vinte minutos. E pensar que uma criança pequena aguentou vinte minutos a olhar para cima… E o meu pai: «que engraçado, ele está interessadíssimo…»

João: E o homem desce, e eu digo: «olha, não caiu!» (risos)

Paula: O meu sobrinho mais novo, o Diogo, sai ao pai. Quando um dia lhe perguntaram se estava a tirar macacos do nariz, ele diz: mas porquê, estão mortos!

João: É o que é piloto aviador.

 

Será que ainda tira muitos «macacos»  agora, no cockpit?

Ruy: Agora tira, mas já não diz nada!

João: Não pode é mandar pela janela! (risos)

Ruy: Reparem,  é aquilo que as pessoas quando estão nos semáforos estão sempre a fazer.

 

O meu marido a primeira coisa que reparou aqui em Portugal foi isso: «vocês tiram muitos macacos do nariz!»

Paula: É porque ele nunca foi à Alemanha, lá é horroroso.

Henrique: Mas lá nos Estados Unidos não têm «macacos» no nariz?

 

Foi o que eu lhe disse: mas tu não precisas de limpar o teu nariz? E ele: «assôo-me, não tiro macacos!»

Paula: Há «macacos» que não saem com o lenço.

João: Mas olha, têm uma coisa pior, que é escarrarem na rua.

Paula: Mas os alemães a tirar macacos é uma coisa impressionante!

João: Eu não resisto: quando estamos parados no trânsito e é uma senhora a fazer isso, às vezes brinco.

Ruy: Mas é uma coisa que muita gente faz, é um sinal de descontração quase. Uma pessoa que faz isso tem carta pelo menos há cinco anos.

 

Porquê?

Henrique: Olha, eu ainda não tenho carta há cinco anos.

 

E fazes isso?

Ruy: É a descontração, sem querer fazem isso.