“Diário de uma avó e de um neto em casa…Confinados”

Sábado – 27 de março 2021
Querida avó,
Hoje é Dia Mundial do Teatro.
Todos os anos, para comemorar a data, realizam-se vários espetáculos teatrais gratuitos ou com bilhetes mais baratos e são relembrados alguns artistas e obras mais importantes da história do Teatro. O objetivo da data é promover a arte do Teatro junto das pessoas.
Mas este ano nada disso acontece. Aliás, ao longo deste ultimo ano, a Cultura tem sido bastante massacrada. Os Teatros ou estão fechados ou trabalham a 50%.
Como muitos ganham uma percentagem da bilheteira, tem sido um flagelo para empresários, atores, técnicos e tantas famílias que dependem do Teatro.
O Teatro é uma arte milenar e funciona como um meio de divulgação da cultura.
Já ouvi tantas vezes a Eunice Muñoz falar dos avós que pertenciam ao Teatro, assim como os avós da Manuela Maria com quem andava de terra em terra.
Existem vários géneros teatrais como a comédia (a falta que tu e as pessoas mais velhas devem sentir do Parque Mayer), o drama, a farsa, a tragédia, a revista, o teatro infantil, entre outros.
Todos dizem que o Teatro Monumental era lindíssimo. Mas ninguém melhor do que tu (que durante a tua infância percorrias tudo o que era Teatro desde os clássicos à revista), para falares de Teatros extintos, dos atores de outros tempos que não devem ser esquecidos como: Laura Alves, Varela Silva, Palmira Bastos, Amélia Rey Colaço, Ivone Silva, Mário Viegas, ou encenadores como o Ribeirinho, o Vasco Morgado e tantos outros.
Não posso falar do Teatro sem referir a grande obra que é a Casa do Artista, um sonho tornado realidade pelo Raul Solnado, o Armando Cortez e tantos outros como a Carmen Dolores que morreu recentemente. O último reduto de dignidade numa atividade desregulada e instável. A Casa onde: “É Proibido Envelhecer”.
Por falar em Carmen Dolores, hoje, Dia do Teatro, é inaugurada em Birre, Cascais, uma rua com o nome da atriz. Uma iniciativa conjunta da União de Freguesias Cascais-Estoril e a autarquia cascalense.
Como sabes, logo tu que também tens uma ligação tão forte com Cascais, a conceituada atriz faz parte da história do Teatro Experimental de Cascais, sendo também esta a forma que a companhia encontrou para honrar e celebrar a sua memória, numa data tão especial quanto a desta efeméride.
A atriz, que dedicou parte da sua vida aos grandes poetas, esteve sempre ligada afetivamente a Cascais (ali passou durante muitos anos a época balnear), onde foi sempre acarinhada e homenageada em diversas ocasiões.
A juntar às inúmeras condecorações que lhe foram atribuídas, passará agora a figurar o seu nome numa das artérias da vila.
Não te esqueças de mudar a hora. Deves adiantar o relógio uma hora.
Gosto tanto do horário de Verão. Viva o Teatro!
Bjs e bom fim de semana.

Querido neto,
Nem imaginas a falta que o teatro me faz.
Nunca me lembro de mim sem ver teatro.
Tive muita sorte, por duas razões: o tio que me criava adorava teatro; e também porque nessa altura não havia classificações dos espetáculos, como depois houve: para 6 anos, para 12 e para 18. Todos podiam ver tudo.
O meu tio era muito eclético: nunca faltava a uma estreia no Teatro Nacional, nem a uma estreia nos teatros do Parque Mayer. E eu sempre com ele. E no fim dos espetáculos, largava-me da mão e eu entrava nos bastidores para ver aqueles atores todos. E eles tinham imensa paciência para mim… A Amélia Rey Colaço, minha amiga até ao fim da sua vida, tal como a Marianinha (como sempre chamei à Mariana Rey Monteiro), a D. Palmira, a Lurdes Norberto, e tantos outros.
E sim, faz-me imensa falta o teatro de revista e todos os amigos e amigas que lá fiz : o Zé Viana, a Beatriz Costa , a Leónia Mendes, a Helena Tavares, e tantos outros. A Beatriz Costa ensinou-me imenso, nas tardes que passávamos no Hotel Tivoli onde ela vivia. Quando eu lhe fazia uma entrevista, mandava-me sempre um cartão a agradecer—e outro ao diretor do jornal a elogiar o meu trabalho. E mandava sempre parabéns quando os meus filhos faziam anos,—e, quando o meu filho se casou, mandou-lhe uma linda colcha de crochet.
Mas o meu tio, como se não lhe bastassem os teatros, passava todas as tarde no café Paulistana (hoje é um centro comercial ao cimo da Av. Fontes Pereira de Melo), que era o poiso de muitos atores. E eu falava com eles todos , o Raul de Carvalho, o Ruy de Carvalho, o Artur Semedo , o Carlos Coelho (estes dois, ainda por cima eram seus inquilinos, numas moradias que ele tinha perto de Lisboa, e quase nunca lhe pagavam a renda., mas ele ria tanto com eles , que nem se importava…) Lembro-me que, quando acabei o curso na Faculdade de Letras, muitos deles assinaram as minhas fitas da pasta para a Queima das Fitas. E é por isso que o Ruy de Carvalho está sempre a dizer que somos amigos de infância….
Ah, e também nunca falhávamos um espectáculo no Monumental, um teatro (e cinema) lindíssimo.
Lembro-me que o teatro abriu com um espetáculo chamado “As Três Valsas”; e o cinema com o filme “O Facho e a Flecha”. E eu fui ao cinema mesmo no último dia antes de ele fechar e mandei um cartão aos donos a dizer: “Fui ao Facho, vou ao fecho”. E eles responderam-me a dizer que não me preocupasse, ia estar fechado só durante algum tempo, para obras, e logo reabriria. Viu.se…
E gosto tanto de teatro que já escrevi duas peças: “Leandro, Rei da Helíria”,que foi representado pelo Teatro Experimental de Cascais, e faz parte do reportório da sua Escola de Teatro; e “Um Anjo de Barbas”, interpretado pelo grupo de teatro Palco Treze, de Cascais. E o meu livro “Graças de El’ Rei Tadinho” foi adaptado ao teatro e representado pelo TIL durante meses e meses.
E só para terminar: uma das coisas que recentemente me deu mais prazer foi ver o Teatro Aberto apresentar a peça “E Toda a Cidade Ardia,” encenada pela Marta Dias, baseada na minha vida.
Viva o Teatro!
(Vou já mudar os relógios todos para o Horário de Verão).
Outros capítulos aqui: “Diário de uma avó e de um neto em casa Confinados”
HERBERTO HELDER – O ACTOR
O actor acende a boca. Depois os cabelos.
Finge as suas caras nas poças interiores.
O actor pôe e tira a cabeça
de búfalo.
De veado.
De rinoceronte.
Põe flores nos cornos.
Ninguém ama tão desalmadamente
como o actor.
O actor acende os pés e as mãos.
Fala devagar.
Parece que se difunde aos bocados.
Bocado estrela.
Bocado janela para fora.
Outro bocado gruta para dentro.
O actor toma as coisas para deitar fogo
ao pequeno talento humano.
O actor estala como sal queimado.
O que rutila, o que arde destacadamente
na noite, é o actor, com
uma voz pura monotonamente batida
pela solidão universal.
O espantoso actor que tira e coloca
e retira
o adjectivo da coisa, a subtileza
da forma,
e precipita a verdade.
De um lado extrai a maçã com sua
divagação de maçã.
Fabrica peixes mergulhados na própria
labareda de peixes.
Porque o actor está como a maçã.
O actor é um peixe.
Sorri assim o actor contra a face de Deus.
Ornamenta Deus com simplicidades silvestres.
O actor que subtrai Deus de Deus, e
dá velocidade aos lugares aéreos.
Porque o actor é uma astronave que atravessa
a distância de Deus.
Embrulha. Desvela.
O actor diz uma palavra inaudível.
Reduz a humidade e o calor da terra
à confusão dessa palavra.
Recita o livro. Amplifica o livro.
O actor acende o livro.
Levita pelos campos como a dura água do dia.
O actor é tremendo.
Ninguém ama tão rebarbativamente como o actor.
Como a unidade do actor.
O actor é um advérbio que ramificou
de um substantivo.
E o substantivo retorna e gira,
e o actor é um adjectivo.
É um nome que provém ultimamente
do Nome.
Nome que se murmura em si, e agita,
e enlouquece.
O actor é o grande Nome cheio de holofotes.
O nome que cega.
Que sangra.
Que é o sangue.
Assim o actor levanta o corpo,
enche o corpo com melodia.
Corpo que treme de melodia.
Ninguém ama tão corporalmente como o actor.
Como o corpo do actor.
Porque o talento é transformação.
O actor transforma a própria acção
da transformação.
Solidifica-se. Gaseifica-se. Complica-se.
O actor cresce no seu acto.
Faz crescer o acto.
O actor actifica-se.
É enorme o actor com sua ossada de base,
com suas tantas janelas,
as ruas –
o actor com a emotiva publicidade.
Ninguém ama tão publicamente como o actor.
Como o secreto actor.
Em estado de graça. Em compacto
estado de pureza.
O actor ama em acção de estrela.
Acção de mímica.
O actor é um tenebroso recolhimento
de onde brota a pantomina.
O actor vê aparecer a manhã sobre a cama.
Vê a cobra entre as pernas.
O actor vê fulminantemente
como é puro.
Ninguém ama o teatro essencial como o actor.
Como a essência do amor do actor.
O teatro geral.
O actor em estado geral de graça.
