“Diário de uma avó e de um neto em casa…Confinados”
Sexta – 26 de março 2021
Querida avó,
Hoje é dia de aniversário da minha mãe. Só isto, já seria um belo tema para a nossa conversa de hoje.
Aliás, ainda esta semana ela te perguntava: “ D. Alice, se o meu filho é seu neto, o que a D. Alice é a mim?” Ah, ah ,ah
Mas sobre a minha mãe teremos outras oportunidades de falar.
Hoje celebra-se o Dia do Livro Português, tema sobre o qual me apetece falar.
Uma data criada pela Sociedade Portuguesa de Autores, com o intuito de destacar a importância do livro, do saber e da língua portuguesa em todo o mundo. Parece-me tão bem.
Não foi por caso que foi escolhido o dia 26. Segundo consta, foi a 26 de março de 1487 que, nas oficinas do judeu Samuel Gacon, na Vila-a-Dentro, em Faro, se imprimiu o primeiro livro em Portugal: o “Pentateuco”, em hebraico. Já o primeiro livro escrito em português foi impresso no Porto, dez anos depois, em 4 de janeiro de 1497. Produzido pelo primeiro impressor luso, Rodrigo Álvares, o livro tinha o título de “Constituições que fez o Senhor Dom Diogo de Sousa, Bispo do Porto”.
Agora podia dar uma de intelectual, e desatar aqui a falar de autores portugueses. Podia começar pelo Camões, referir heterónimos do Fernando Pessoa, dizer que gosto imenso dos livros do Eça de Queiroz, deixar muitos corados com umas frases do Bocage, podia dizer que li todos os livros do Saramago (único Nobel da Literatura até agora). Que gostei imenso do livro “Os Bichos” do Miguel Torga, que li os livros todos da Agustina Bessa-Luís, dizer uns poemas da Florbela Espanca ou da Sophia, falar do Almeida Garret…
Podia estar aqui o dia inteiro a falar de escritores antigos, de escritores contemporâneos, a falar dos livros do José Rodrigues dos Santos (que vendem mais do que pãezinhos acabados de fazer), mas a minha vida não é só isto, e tenho que ir almoçar com a minha mãe, (cada um à ponta da mesa).
Mas sendo hoje Dia do Livro Português, o único autor do qual me apetece falar é precisamente de ti.
Tu que começaste a escrever “para calar os (teus) filhos” que queriam uma história escrita por ti. Mas nem foi por eles acharem que escrevesses bem, mas porque tinham aquela queixa que todos os filhos de jornalista têm, que nunca estavas em casa, que passavas pouco tempo com eles, que nunca escrevias nada para eles e só escrevias no jornal. Já viste os traumas que podias ter deixado nas criaturas?
Um dia sentam-se a uma mesa e começam os três a escrever a história.
Não sei se isso é explorar, ou estimular, a criatividade das crianças. Mas efetivamente o resultado não podia ser melhor!
E assim nasce por “mero acaso” o livro “Rosa Minha Irmã Rosa”.
Um livro que fala de Mariana, filha única, que tem dez anos quando Rosa nasce. Agora vai partilhar tudo com a irmã: o quarto, o tempo dos pais, o afecto da família — incluindo a Avó Elisa, que desconfia do progresso, e a Tia Magda, que tem um dente de ouro, uma fala que mete medo e só gosta de estrelícias e antúrios.
Não podia ser mais simples.
Com isto já passaram 41 anos. O livro já tem mais do que 30 edições, ganhou prémios, está traduzido em muitas línguas, é transversal a várias gerações, e continua a encantar os mais novos da mesma forma como encantou os pais.
É extraordinário como um livro pode influenciar e mudar tanto a vida das pessoas.
Apesar de já não ser novidade para mim, continuo a ficar boquiaberto cada vez que alguém se aproxima de ti e diz: ” Dei o nome à minha filha por causa de um livro seu que li na adolescência”.
Abençoados filhos que descobriram a belíssima escritora que estava (e está) dentro de ti.
Depois desse primeiro livro, surgiram mais dois que fazem parte da trilogia.
Hoje tens mais de 80 livros publicados.
Mas deixo a ti a missão de falares sobre isso, pois a minha mãe já me está a ligar a perguntar se estou atrasado para o almoço.
Não posso ir embora sem partilhar contigo. Esta manhã, depois de ter ido correr para o parque da Bela Vista, estou a chegar a casa e já andava a D. Lurdes a lavar a entrada do prédio.
Digo-lhe: “Bom dia D. Lurdes. Está um lindo dia de Primavera. Hoje é Dia do Livro Português. Qual o livro que mudou a sua vida”?
Ela ficou, pasmada, a olhar para mim com a máscara quase a cair. Até pensei que ao vir ofegante da corrida ela não tivesse percebido o que eu tinha dito.
Nisto diz-me: “O menino acha que tenho tempo para ler? Ninguém sonha em ser doméstica! Tanto que tenho para fazer todo o dia. Quando chego ao serão só quero ver as novelas. Às vezes nem sei em que canal estou…
Já cheguei a pegar em livros para ler. Mas aquilo tem tantas folhas… Quando chego á pagina 20 já nem lembro do que estava na primeira.
Mas posso dizer-lhe que efectivamente houve um livro que mudou a minha vida: O livro do registo civil”.
Logo passo no teu prédio para te deixar um pedaço do bolo de aniversário da minha mãe. Deixo-o com a tua porteira, para continuarmos a manter as distâncias.
Boas inspirações para mais livros em português
Bjs
Querido neto
Antes de começar a falar do que realmente hoje nos interessa—o livro português—deixa-me esclarecer uma coisa, senão as pessoas que nos leem, e não nos conhecem, ficam completamente baralhadas.
É claro que não és meu neto de sangue, tens a idade dos meus filhos, mas desde há muito que tenho um grande grupo de ”netos postiços”—a Carolina, tu, o Sílvio, a Anabela (por ordem de entrada em cena…) que me tratam por avó. Tenho uma relação maior contigo, é evidente, e o que é engraçado é que há muita gente que nos conhece, que olha para nós, e acredita mesmo que és meu neto!
Ora vamos lá aos livros.
E a propósito de Eça de Queiroz, que citaste, eu sou tão velha que ainda conheci uma filha dele, a D Maria, Marquesa de Ficalho. Carregava nos erres quando falava, e era tão divertida! Hoje sou muito amiga de um trineto, o Afonso Reis Cabral, agora com pouco mais de 30 anos mas que, aos 24, ganhou o Prémio Leya com o romance “O Meu Irmão”. E tudo o que tem escrito depois é muito bom. Tens de ler! Ah, e foi dos primeiros a dar-me os parabéns no dia dos meus anos!
Mas falando dos meus livros (de que já disseste quase tudo)
Gosto muito quando recebo cartas de leitores muito longe de Portugal que me dizem que gostaram muito de um livro meu que leram.
Nunca percebi por que é que o meu livro “A Espada do Rei Afonso” é tão popular na Rússia! Eles leem, e há dias recebi um vídeo de um ilustrador, que tinha feito as ilustrações para o meu livro, e estava a explicar aos alunos o que cada uma significava. Claro que eu não percebi nada do que ele estava a dizer, mas as ilustrações eram lindas (muito mais bonitas do que as da edição portuguesa…) e os alunos estavam muito atentos. E recebi uma vez uma carta em que a miúda dizia: “nunca pensei saber tantas coisas sobre o primeiro rei de Portugal…” E um postal da China: ”a minha namorada leu “O Olhos de Ana Marta” e agora vou eu ler!”. E também há destes, na Holanda: ” a senhora é que escreveu “Flor de Mel”, que a minha mãe me obrigou a ler quando eu era miúdo?”
E há dias recebi um postal da Alemanha em que a jovem – já adulta – me dizia que “Os Olhos de Ana Marta” tinham sido muito importantes para ela. Segundo contava, ela também tinha passado a infância e a adolescência com uma mãe muito pouco afetuosa e muito distante, e que a heroína do livro a tinha ensinado a lidar com isso e, mais tarde, a enfrentar a mãe. E agradecia-me muito por isso.
E uma miúda francesa, que tinha lido “A Charada da Bicharada” (que são adivinhas sobre animais, para os leitores mais jovens) e que me mandava mais duas para eu juntar às minhas
E uma história muito antiga, quando eu ainda vivia em Cascais. Estava eu a sair da praia e aparece-me pela frente um miúdo, de fato de banho, que me começa a falar em francês, estava muito aflito, enquanto tinha ido tomar banho tinham-lhe roubado a roupa e a carteira, não tinha dinheiro nenhum e estava sozinho, se eu lhe podia emprestar algum… E eu já a pensar, evidentemente, que ele me estava a aldrabar, quando ele olha para mim e diz: ”Não é a Alice Vieira? Eu sou de Zurique, lembra-se de ter ido à nossa escola porque nós tínhamos lido o “Leandro, Rei de Helíria” ? Gostei tanto desse livro!”
Eu lembrava-me muito bem. Então ele disse: “Eu preciso mesmo que me empreste algum dinheiro, e juro que lhe pago assim que chegar a casa.”
Fui com ele ao multibanco e dei-lhe algum dinheiro – sempre pensando que nunca mais o iria receber.
E não é que, passado para aí um mês, eu recebo uma carta dele com o dinheiro todo? Tinha ido à professora perguntar a minha morada—e ali estava. Ainda hoje nos escrevemos… e já é professor.
Eu trabalho tanto, que gosto de saber que o meu trabalho serve para alguma coisa e ajuda os meus leitores.
Pelo menos a serem um pouco mais felizes.
E agora que as livrarias já estão abertas, mete a máscara e, vai comprar o livro do Afonso Reis Cabral.
Dá um beijo meu à tua mãe. Quando for possível marcamos um almoço para festejar o meu aniversário e o dela.
Não te esqueças de mudar a hora no domingo
Bjs e bom fim de semana.
Outros capítulos aqui: “Diário de uma avó e de um neto em casa Confinados”
Querida avó,
Mas tu pensas que eu não tenho os 3 livros do Afonso Reis Cabral?
Que julgamento fazes de mim!?
Aproveita e lê o Testemunhos do Afonso aqui: Retratos Contados de Afonso Reis Cabral
Repara que livros acompanha os do Afonso.
Fui.
Bjs