“Diário de uma avó e de um neto”
Domingo, 2 de maio 2021
Dia da Mãe Trabalhadora
Querida avó,
Este sábado é o Dia do Trabalhador. Uma data que, em Portugal, só começou a ser festejada a partir de maio de 1974, após a Revolução do 25 de abril. O ano passado, devido à pandemia, as comemorações desse dia foram completamente diferentes dos anos anteriores. Costuma ser comemorado em todo o país, com manifestações, marchas, comícios e afins. Esta é uma forma de os trabalhadores apresentarem ao Governo, e às entidades patronais, algumas iniciativas e reivindicar os seus direitos.
Este ano calha a um sábado. Menos um feriado para comemorarmos.
Este domingo é Dia da Mãe. Sei que, tal como tu, muita gente continua a celebrar este dia a 8 de dezembro. Não percebo por que mudaram o Dia da Mãe para o primeiro domingo de maio. Todos os dias são “dias da mãe”. Mas se é para haver uma data para homenagear todas as mães, e para reforçar e demonstrar o amor dos filhos pelas suas mães, que seja o mesmo dia de homenagem à Virgem Maria, mãe de Cristo.
Muitas vezes não é nada fácil conciliar a maternidade com o trabalho profissional.
Ser mãe e trabalhadora é um desafio constante. Felizmente, cada vez mais, as obrigações com os filhos, e com a casa, são divididas pelo casal.
Agora lembrei-me do belo poema de António Gedeão que é ao mesmo tempo um Retrato Contado da mulher maltratada em casa e explorada no trabalho:
Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe
sobe a calçada.
Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas,
não dá por nada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu da sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada;
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce a calçada,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga;
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
António Gedeão, Poesias Completas (1956-1967)
Uma triste realidade na casa de tantas mães trabalhadoras.
Feliz para todas as mães trabalhadoras.
Bjs
Hoje vou falar mais do Dia da Mãe—já que tu falaste muito—e bem—da mãe trabalhadora.
Sou das que sempre se habituaram a festejar o Dia da Mãe no dia 8 de Dezembro, e já estou velha para mudar. Porque até meados dos anos 70 a data foi esta.
De resto, os meus festejos do Dia da Mãe são poucos. Fiquei muito traumatizada desde que, nesse dia, nos anos 50, se festejavam as mães no liceu Filipa de Lencastre, onde eu andava.
Era o Dia dos Berços. Uma invenção criada pela Mocidade Portuguesa, para mostrar como as meninas portuguesas eram umas futuras fadas do lar e tinham uns corações de oiro.
Então, até ao dia 8 de Dezembro nós costurávamos, tricotávamos, bordávamos para fazermos uma grande exposição no ginásio—que era a sala maior que lá havia. Durante esse tempo todo as senhoras da Mocidade Portuguesa estavam sempre a repetir-nos que as colchas, os lençóis, os babetes, os vestidos de bebé, etc, tudo tinha de ser em pano muito grosso, para lavar muitas vezes e durar muito “porque era para as pobrezinhas”.
Pobrezinhas mesmo. Lembro-me de ouvir uma vez uma delas dizer para a senhora da Mocidade, que até tinha vergonha de estar ali, mas em casa não havia nada para comer. E a outra respondeu logo “comida é que não, arranjem-se de qualquer maneira, não podemos dar tudo.”
Uma vez em casa tinham-me comprado linho para eu fazer um lençol para uma alcofa (lençóis e fraldas era a única coisa que eu sabia fazer, porque era só coser baínhas)—e lá não aceitaram.
Durante alguns dias “as pobrezinhas” que a Mocidade ajudava inscreviam-se—e no dia 8 faziam fila , senhas na mão, para verem o que lhes tinha calhado em sorte. E agradeciam muito “às meninas tão boazinhas”, e a pessoa da Mocidade que estava ao pé de nós acrescentava logo, “elas aprendem aqui na escola que têm sempre de ajudar os pobrezinhos”
Anos e anos a ver estas coisas, quem é que não fica traumatizada para o resto da vida.
E vamos lá festejar o 1º de maio!
Outros capítulos aqui: “Diário de uma avó e de um neto … Desconfinados”