“Diário de uma avó e de um neto”
Quinta-feira, 13 de maio 2021
Querida avó,
Então passados 19 anos o Sporting lá voltou a ter nas mãos o maior troféu do futebol nacional. Rúben Amorim, atual treinador do Sporting, deu os primeiros passos como jogador no Casa Pia.
Por falar em Casa Pia, a última vez que o Sporting tinha sido campeão, o caso Casa Pia ainda não tinha rebentado. Durão Barroso tinha acabado de chegar a primeiro-ministro… Os Sportinguistas que viram o seu clube ser pela primeira vez campeão, já podem votar e tirar a carta de condução. Peno que, a maioria, não sabe o que foi o caso Casa Pia, nem quem é o Durão Barroso.
Esteja onde estiver, quem está felicíssima é a Maria José Valério.
Como diria a Teresa Guilherme “Isso agora não interessa nada!”
Hoje, para além de ser Dia da Nossa Senhora de Fátima, é também quinta-feira da Espiga.
Dia em que as pessoas costumavam ir ao campo colher um ramo de espiga.
Lembro-me tão bem de ser pequeno e ir com os meus avós apanhar o que a natureza nos dava para compor o Ramo da Espiga.
Tão diferente daquilo que em Lisboa vemos neste dia, com vendedoras de Ramos de Espiga já feitos.
Dia da espiga ou Quinta-feira da espiga é uma celebração portuguesa que ocorre no dia da Quinta-feira da Ascensão. Por isso, tal como outras datas, não acontece num dia fixo do calendário.
Quando era pequeno vivia num local onde o dia de hoje era feriado, tal como acontece em muitos concelhos de Portugal.
Como tal, o dia começava com um passeio matinal pelo campo, onde colhíamos espigas de vários cereais, flores campestres e raminhos de oliveira para formar um ramo. Esses campos hoje estão repletos de casas.
Segundo a tradição, que aprendi com os meus avós, o ramo deve ser colocado por detrás da porta de entrada, e só deve ser substituído por um novo no dia da espiga do ano seguinte.
No passado, Dia da Espiga era também o “Dia da Hora” e considerado “o dia mais santo do ano”, um dia em que não se devia trabalhar. Era chamado o dia da hora porque havia uma hora, o meio-dia, em que tudo parava, “as águas dos ribeiros não correm, o leite não coalha, o pão não leveda e as folhas se cruzam”. Era nessa hora que se colhiam as plantas para fazer o ramo da espiga e também se colhiam as ervas medicinais. Em dias de trovoadas queimava-se um pouco da espiga no fogo da lareira para afastar os raios.
Pelo menos eram essas as lendas que os meus avós me contavam.
Estes rituais pagãos costumavam-se observar pelo meio da Primavera, mais ou menos no actual mès de Maio, e sempre tiveram grande implementação popular.
No Dia da Espiga as pessoas iam pelos prados em busca dos vários constituintes do Ramo da Espiga. No entanto com a industrialização e a crescente migração para as grandes cidades, começou a haver cada vez mais dificuldade em cumprir este preceito.
A isto se juntou em 1952 o fim deste Feriado Nacional. Obrigada a abdicar de alguns feriados, a Igreja Católica aceitou “sacrificar” a Quinta Feira da Ascensão.
Foi assim que também nasceu o negócio, muito visível em Lisboa, do Dia da Espiga. Da região saloia, especialmente de Mafra (onde se mantém o feriado,) pessoas do campo vão para a cidade vender estes ramos a quem trabalha ou vive na capital.
Em muitos mercados da cidade também se continua a ver as vendedoras locais com a venderem estes ramos.
Um símbolo de prosperidade e de sorte.
Para quem não sabe o que significa cada planta que o Ramo de Espiga deve ter, aqui fica a explicação:
As espigas devem ser sempre em número ímpar, e são a parte mais importante do ramo. Podem ser de trigo, centeio, aveia, ou qualquer outro cereal.
Representam o pão, como a base do sustento da família, e a fecundidade.
A papoila, com a sua cor vibrante e quente, significa neste ramo o amor, e a vida.. Sendo a parte mais garrida do ramo acaba por ser também aquele que mais cedo murcha com o passar dos dias.
O malmequer simboliza a riqueza, e os bens terrenos. Isto porque o branco simboliza a prata, e o amarelo simboliza o ouro.
A oliveira acaba por ter um duplo significado. Em parte significa a Paz (sendo que é um dos símbolos da Paz desde a antiguidade), mas ao mesmo tempo é o símbolo da Luz, visto que do seu óleo se enchiam as lâmpadas que alumiavam as casas, representando igualmente a sabedoria divina.
Tal como a oliveira, o alecrim é outra presença constante nos países mediterrânicos. Com o seu cheiro forte e duradouro, é uma planta que resiste a quase tudo, simbolizando por isso a força e a resistência.
A representação do vinho, tão importante para a nossa cultura e tradição, faz-se naturalmente com a videira, ligado também à alegria.
E pronto, querida avó, estas são as plantas principais do Ramo da Espiga, sendo que tradicionalmente qualquer outra planta que surja durante a caminhada do Dia da Espiga pode ser adicionada para embelezar. No entanto reza a tradição que não deve faltar nenhuma das acima referidas, para não faltar o que ela representa.
E tu avó? Que tradições tens neste dia?
Sei que tens uma espiga em casa que em nada tem a ver com o Dia da Espiga.
Conta-me tudo. Não me escondas nada!
Que este seja um ano próspero para todos. Que acima de tudo não nos falte saúde.
Já levastes a segunda dose da vacina? Que tal?
Ontem fiz a minha primeira zaragatoa. Está tudo bem.
Bjs
Querido neto,
Começando pelo fim, já levei a segunda dose da vacina.
Como sabes, apesar de duplamente vacinada, vou continuar de máscara e muito recatada (até fiz um verso).
É verdade! Passados 19 anos o Sporting lá ganhou o campeonato. Tu viste as imagens ontem nos telejornais?
Inacreditável! Milhares de sportinguistas, quase ao colo uns dos outros, por causa do jogo. Apesar dos adeptos não poderem entrar no estádio … mas isso que importa? Milhares de pessoas a gritar, a beber, em euforia, e ainda fazem frente à Polícia … Vergonha alheia!
Nem me apetece falar mais do assunto. Vamos ao que realmente importa.
Meu Deus, as coisas que eu aprendi hoje no teu texto… Como estás sempre a dizer, os novos também ensinam muito aos mais velhos.
Nunca me lembro de não ter tido um ramo de espiga cá em casa.
Há três anos, quando parti duas vértebras e não me pude mexer durante uma data de tempo, o então presidente da minha Junta de Freguesia veio trazê-lo a minha casa. Fiquei a dever-lhe essa.
Mas tens razão. A espiga de trigo que ainda hoje conservo aqui na sala não tem rigorosamente nada a ver com o Dia da Espiga. Mas garanto-te que é a espiga mais linda do mundo.
Estávamos em Agosto de 1988. Nesse mês havia sempre um grande Salão do Livro na cidade de São Paulo, no Brasil, a que eu nunca faltava. Demorava muitos dias, havia uma série de encontros e colóquios, passávamos sempre lá um tempo extraordinário—sem esquecer um pezinho de dança nos forrós, que duravam até de manhã.
Convém recordar que se estava ainda num tempo pré-histórico, sem net nem telemóveis.
Uma noite eu e vários amigos (o Baptista Bastos, o Vítor Branco, da Caminho, o António Torrado e outros) tínhamos saído de um forró e estávamos a cear numa cantina, das muitas que havia em São Paulo.
E de repente fez-se um terrível silêncio. O programa da televisão tinha sido interrompido para um jornalista anunciar que Lisboa estava a arder. Ele ainda não sabia bem o que tinha acontecido, mas uma coisa era certa: o centro histórico de Lisboa estava todo em chamas. (Ainda hoje me lembro dessa frase).
Ninguém sabia mais nada, o dono da cantina telefonava para colegas e ninguém sabia mais do que isso.
Eu levantei-me da mesa, disse “fiquem vocês, se quiserem, eu vou já tomar um táxi, apanho a minha mala no hotel e sigo logo para o aeroporto apanhar o primeiro avião que levantar voo.”
Foi um coro de “estás maluca? Sozinha, a pé, pelas ruas de São Paulo a esta hora da madrugada?! Fica sossegada, nós também não demoramos muito, e amanhã apanhamos todos o avião”.
Mas eu, nem pensar. “Fiquem, fiquem se quiserem, mas eu vou-me já embora.”
E fui. Táxis, nem vê-los.
Até que, a uma dada altura, eu vejo um negro, enorme, muito sujo, perdido de bêbedo, quase a cair no passeio, a avançar para mim do fundo da rua vazia.
Pensei “pronto, vai ser o último dia da minha vida, não devia ter saído da cantina”, mas já não podia fazer nada, o negro continuava a avançar na minha direcção, e agora chamava por mim.
“Moça! Ó Moça!”
E eu, “ é agora, não tenho fuga possível”—e logo os braços dele a agarrarem-me com força.
Reparo que chora baba e ranho (e não é metáfora…), e que tem uma espiga de trigo na mão. Fica para ali a abraçar-me, “ó moça, ó moça!”, a chorar, até que de repente me entrega a espiga .
“Ó moça, tome, isto é para você, porque eu estou muito triste porque Lisboa está a arder…”
E foi agarrado a mim até ao meu hotel, sempre a chorar, e a repetir “Lisboa está a arder”…
Levei a espiga na mão para o avião, desembarquei em Lisboa com ela na mão—e há 33 anos que ela ali está, a olhar para mim.
Que bom que o resultado da tua zaragatoa foi negativo.
Protege-te sempre. Escuta a tua avó!
Beijos
Outros capítulos aqui: “Diário de uma avó e de um neto … Desconfinados”