“Diário de uma avó e de um neto”
terça-feira, 01 de junho 2021
Querida avó,
Hoje celebramos o Dia da Criança.
Este dia começou a ser comemorado em 1950 (ano de nascimento da minha mãe), por iniciativa da ONU. O intuito é chamar a atenção para os direitos das crianças, nomeadamente a necessidade que estas têm de viver num ambiente de paz e harmonia que contribua para o seu pleno desenvolvimento.
As crianças de 1950 nada tinham a ver com as crianças de agora. Muitas iam à escola esporadicamente, meninos e meninas em salas separadas. As famílias eram numerosas, como tal muitos começavam a trabalhar ainda em crianças. No campo, as meninas mais velhas ajudavam na lida da casa, a tomar conta dos irmãos mais novos, e desempenhavam tarefas que hoje são impensáveis. Os meninos trabalhavam no campo ao lado dos adultos.
Na cidade, era frequente ver as meninas das classes socias menos abonadas servirem nas casas das famílias ricas. Outras vendiam de porta em porta, lavavam roupa… Os rapazes engraxavam sapatos, faziam entregas, eram ardinas…
Nos anos 70, quando eu era criança, não havia computadores, telemóveis consolas, Internet, tv por cabo, a televisão era a preto e branco, só tinha dois canais e a emissão acabava cedo.
Liamos os livros dos Cinco da Enid Blyton, saboreávamos os primeiros tempos do período pós revolução de Abril, colecionávamos cromos, brincávamos na rua sem os pais terem medo de partirmos a cabeça, tocávamos às campainhas e corríamos a rir…
As crianças de hoje não vão saber o que eram os ardinas, nem o que era escrever uma carta ou um postal, nem um fax ou um telegrama. Não vão saber passar um cheque, nem o que é um telefone fixo. Provavelmente nem vão saber para que serve uma máquina fotográfica.
Cada geração vai sendo diferente da anterior.
Mas o importante é não deixar esquecer como era o antigamente.
Cabe aos mais velhos partilhar com os mais novos as memórias de Portugal.
Todos nós temos uma criança dentro de nós.
Bjs
Querido neto
Quando era miúda, ninguém falava em Dia da Criança. E lembro-me muito bem de muitas terem a vida de que tu falas. A nossa comum amiga Elisa Dias, por exemplo, que depois da 4ª classe andou a trabalhar no campo até casar, e então disse que queria vir estudar. Veio para Lisboa—e, em meia dúzia de anos, fez o liceu e formou-se em engenharia no Instituto Superior Técnico.
Tenho muito poucas recordações da minha infância. Uns flashes breves de mim junto de alguém…e pouco mais. Possivelmente como defesa.
Da minha infância, aquilo que recordo são os livros. Foram eles que me ajudaram a sobreviver. Eu aprendi a ler era muito pequena, sozinha-dizem que a olhar para as letras grandes dos jornais. Não sei, mas nunca me lembro de mim sem saber ler ou escrever. Lia aquelas histórias e pensava que também fazia parte delas.
Um dia as minhas tias chamaram-me para me mostrarem às visitas. E uma delas perguntou-me o que é que eu queria ser. E eu respondi “eu queria ser enjeitada”
É claro que me fecharam no quarto de castigo. Mas eu lia muitas histórias de crianças que eram enjeitadas—e que depois no fim se descobria que eram filhos de reis ou de gente muito importante. Portanto, tinham tido um grande futuro.
Uma das poucas coisas boas da minha infância era que podia ler todos os livros que havia lá em casa. Enfiava-me num canto e assim não aborrecia ninguém.
Não me deixaram ir à escola. Havia uma professora que ia lá a casa todos os dias. E preparavam-se para não me deixarem também ir para o liceu. Mas eu pedi tanto, tanto que lá deixaram.
E lembro-me de as ouvir: “está bem, vais. Mas vais ver, tu nunca estiveste com outras crianças, não queres lá ficar nem um momento”!
Pois não! Eu até inventava aulas que não tinha para poder ficar no liceu mais tempo.
O liceu Filipa de Lencastre foi a minha casa. As professoras e as empregadas foram a minha família. Elas gostavam muito de mim e eu delas. Ia aos casamentos de todas as empregadas, ia lanchar a casa de algumas professoras.
E de lá conservei muitas amigas e (antes do vírus) reuníamos todos os meses num lanche.
E uma das coisas de que me orgulho é que a sala onde eu andei, no Filipa, tem hoje o meu nome.
Mas aproveito ainda o Dia da Criança para te falar de uma outra criança. Chamava-se Mário, nasceu na Alemanha, no início da guerra, o pai era piloto, a mãe americana. O pai desapareceu em combate, a mãe foi parar ao campo de concentração de Dachau. Mário tinha três anos de idade e ficou completamente sozinho.
Para sobreviver juntou-se a outros miúdos de rua, e com eles roubava, assaltava casas, ameaçava matar quem resistisse, dormia nas ruas. A sua debilidade extrema chamava a atenção das pessoas, e um dia a assistência social mandou interná-lo num hospital. Normalmente quando era internado em instituições, Mário fugia imediatamente e voltava para as ruas. Mas desta vez não teve forças.
Um dia viu um vulto de mulher debruçado sobre a sua cama: era a mãe, que tinha sobrevivido a Dachau e o procurava há anos. Também tinha sido internada ali, e reconhecera o apelido. Quando tiveram alta foram viver com uns irmãos da mãe para os Estados Unidos.
Mário tinha 10 anos, não sabia ler nem escrever, e grande dificuldade em ser sociável. Fugia, sempre que podia, para regressar aos seus antigos vícios. Mas os tios nunca desistiram dele.
Resumindo e concluindo: Mário chama-se Mário Capecchi, tem actualmente 83 anos e, em 2007, ganhou o Prémio Nobel da Medicina. (E, já agora, em 2018 esteve em Portugal—e, acreditem, tem o sorriso mais luminoso que alguma vez vi ! E quando lhe falam na sua infância, não renega nada do que passou, sorri e diz apenas, “foi assim, foi assim”).
Penso que são grandes histórias para recordarmos no Dia da Criança.
Tem um feliz Dia da Criança.
Nunca deixes morrer a criança que há em ti.
Bjs
Outros capítulos aqui: “Diário de uma avó e de um neto.”