47º Capitulo de “PÓ DE ARROZ E JANELINHA”. Iniciativa de Alice Vieira e Manuela Niza.
A oportunidade surgiu em plena noite de Santo António, faz agora dez anos.
Dez anos!!! Uma década. E no entanto lembro-me como se fosse hoje!!!
O Anselmo convidou-me a ir ver as marchas na Avenida.
– Num lugar de primeira, Rosinha! – sublinhou- Favores de outros tempos. – e piscou-me o olho.
Acho que nunca o odiei tanto como nessa altura. Aquela ideia de que ainda havia quem pagasse favores a um tipo daqueles revoltava-me até ao mais profundo de mim.
– Mas é uma péssima noite para jantarmos. Tudo cheio… Tenho uma ideia: que me dizes de jantarmos lá em casa e seguirmos dali para as marchas?
O homem andava mortinho por entrar em minha casa esperançoso de passar ao “ nível seguinte”.
Respondeu de imediato que sim e acrescentou brejeiro e nojento:
– O mais que pode acontecer é vermos as marchas pela televisão.
Combinámos que passaria lá em casa por volta das oito e que levaria o vinho.
Eu não o queria demasiado tempo a conspurcar aquele local . Parecia-me quase uma heresia que pisasse o mesmo chão que uma das vítimas. Mas não havia remédio.
Durante dois dias pesquisei receitas e receitas até encontrar o que queria: Uma sobremesa que levava manteiga de amendoim.
Assim que encontrei senti uma serenidade e uma frieza que desconhecia. Não tinha qualquer tipo de remorso ou dúvida : ia matar o bastardo.
Sempre que me lembro daquela noite sinto o calor abrasador da Lisboa em festa . O ar cheirava a manjerico e sardinha assada e a esse outro aroma que ninguém define mas que só pode ser encontrado aqui, nos bairros populares desta cidade e a brisa trazia a música dos vários arraiais.
A mesa estava um primor, o jantar cheirava divinamente, tudo a postos para o grande final.
A campainha tocou às oito horas em ponto.
Vinha de fato completo de linho creme sobre uma camisa branca. Dir-se-ia um brasileiro do Sec. XIX. Elogiei-lhe a aparência, conhecendo-lhe a vaidade. Na mão um manjerico com uma quadra de namorados e envasado num belo vaso de estanho. Fez-me lembrara a Canção de Lisboa mas em mau.
– Tira o casaco , fica à vontade.
Foi o que fez. Um quarto de hora depois parecia estar em sua casa, procurando um saca rolhas nas gavetas da cozinha, para abrir o vinho e “ fazê-lo respirar”.
O jantar foi uma provação que aguentei estoicamente, rindo e conversando com uma animação que não sentia.
Até que chegou o momento da sobremesa.
Da cozinha trouxe o prato como pudim como se transportasse a travessa com a cabeça de S. João Baptista.
– Ah pudim. O que eu gosto de pudim!!! – quase bateu palmas o desgraçado.
Servi-lhe uma fatia generosa e nem esperou que eu própria me servisse para começar a comer.
– Delicioso minha querida, delicioso. Há aqui um toque, um sabor que não identifico mas que é divinal.
Eu olhava-o pensando quanto tempo levaria a finalmente fazer efeito o ingrediente fatal. Pusera dose redobrada mas… e se afinal dessa maneira a coisa não funcionava? E se…
Ele continuava a falar entusiasmado, não dando mostras de qualquer incómodo. Começava a temer pelo meu plano.
De repente vejo-o mais vermelho e a suar.
– Está tudo bem ? – perguntei vendo-o arfante.
– Não sei, parece que me falta o ar. Não sei…- dizia enquanto afastava um pouco o colarinho da camisa.
Levantei-me e abri a janela.
– Um pouco de ar vai fazer-nos bem. Este Verão promete!…- disse eu com uma ligeireza na voz que não sentia no coração.
Mas perante o ar cada vez mais aflito e congestionado propus:
– Será melhor irmos ao hospital ou a um Centro de Saúde. Com tanto azar que vi sair o vizinho cá de cima que é médico, ainda há pouco
Arrogante fez-se de forte.
– Isto é do calor. Um pouco mais de vinho fresquinho e outra fatia fininha dessa pudim e fico fino.
Ainda não tinha dado duas dentadas e já os olhos se lhe reviravam.
– Vamos Anselmo, rápido para o hospital.
Fez sinal de pegar no casaco.
– Deixa ficar não percamos tempo, vamos. Tenho o carro aqui à porta.
A vantagem de se viver num rés do chão é que raramente nos cruzamos com alguém nas escadas. Abri, olhei o patamar deserto e puxei-o por um braço como se o ajudasse.
À porta da rua deixei–o passar à frente, aflito em buscar o ar da noite.
Olhei-o nos olhos e creio que nesse momento alguma coisa dentro dele o alertou. Ainda deitou a mão para impedir que a fechasse com um enorme estrondo deixando-o do lado de fora.
– Vai morrer no Inferno desgraçado. E já agora o vinho branco não respira!
Pois… e ele também não.
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