“Diário de uma avó e de um neto em casa…Confinados”

Segunda – 21 de março 2021
Querida avó,
Cá estamos nós no início de mais uma semana.
Como sabes, nunca faltam assuntos para o nosso “Diário”. Podíamos começar esta semana a falar de tudo e mais alguma coisa. Do Dia do Pai, ou da Io Apolloni , que celebrou 76 anos na passada sexta-feira. Do início da Primavera, ou do Dia da Felicidade que se celebraram no sábado. Ou do Dia Contra a Discriminação Social, Dia da Poesia, Dia da Floresta ou Dia da Árvore que se celebraram ontem. Ou até podíamos começar a semana a falar do Herberto Hélder, poeta cujos livros te fizeram tanta companhia quando viveste em Paris, e que faz amanhã 6 anos que morreu.
Mas vou começar a semana a falar do Dia Mundial da Água que se celebra hoje.
Como em Portugal somos dados às celebrações, celebremos este dia duas vezes por ano. A 22 de março (implementado pela ONU Dia Mundial da Água) e a 1 de outubro (Dia Nacional da Água) por coincidir com o início do ciclo hidrológico.
Como no 1º dia de outubro se celebra também o Dia do Idoso, prefiro celebrar o Dia da Água hoje.
As minhas memórias de infância rementem-me sempre para a minha avó Vitória. Lembro-me que não tinha água canalizada em casa, e de irmos buscar água à fonte, onde a água de nascente era de uma frescura inesquecível.
Na época, a fonte abastecia toda a polução. Naquela fonte matava-se a sede, fizeram-se (e desfizeram-se) casamentos, era naquela fonte que se se sabiam as novidades da aldeia e muito mais. (Tal como acontece nas redes socias de hoje em dia, desfazem-se casamentos e fala-se mal de tudo e de todos).

Com os meus avós, aprendi a importância desse bem indispensável para a nossa sobrevivência. A caminho de casa a avó dizia-me muitas vezes: “Só quem carrega o próprio balde sabe o valor de cada gota”. Embora hoje, com a devida distância, perceba que essa sabedoria popular tinha mais do que um sentido.
A avó Clementina tinha água canalizada. Recordo-me de a ver a lavar a loiça, e aproveitar essa água para depois usar na casa de banho.
Tal como falamos muitas vezes, este assunto tem que estar na ordem do dia. As populações e os governos têm que estar alerta para a urgente necessidade de preservação e poupança deste recurso natural tão valioso.
Não podemos dar como garantida a água potável que nos sai pelas torneiras.
No ginásio, não imaginas o que me custa ver pessoas que fazem a barba com a água a correr continuamente, ou que não desligam o duche.
Como já te disse, os meus avós eram analfabetos, mas foram das pessoas mais inteligentes que conheci.
Nunca me esqueço dos seus ensinamentos. Como tal, tento não desperdiçar água desnecessariamente, dentro e fora de casa.
Os avós maternos eram agricultores como todos os que viviam na aldeia. Como é óbvio a água era fundamental nas suas vidas, tanto para a agricultura como para dar de beber aos animais. Como era tão difícil ir à fonte buscar água, tirar água dos poços, percorrer grandes distancia para dar de beber aos animais, era por demais obvio a importância que os meus avós davam á água.
Hoje vemos um grande desperdício de água potável. Muitos lavam os dentes sempre com a água a correr, ligam a máquina de lavar roupa com poucas peças de roupa… Esquecem-se que a água potável que desperdiçam poderá fazer-nos falta mais tarde.
Nos últimos anos é frequente sermos alertados para problemas relacionados com as alterações climáticas que provocam graves impactos nos recursos de água, temos visto os períodos de seca serem cada vez mais frequentes, não podemos ficar indiferentes a estas situações.
Ainda vamos a tempo de mudar os nossos hábitos! De alertar os outros para o fazerem. Temos que dar valor àquilo que mais importa, a nossa sobrevivência.
Não podemos correr o risco de no futuro seja dito: “Tanto que os nossos antepassados podiam ter feito de maneira diferente”
Que Planeta queremos deixar às gerações futuras?!
Se cada um fizer a sua parte, o mundo será certamente bem melhor para todos.
Espero que o “Diário” de hoje ajude as pessoas a pensarem.
E tu querida avó? O que tens a dizer sobre a importância da água?
Tu que tens um passado tão ligado ao Luso e a Caldelas deves ter imensas histórias para partilhares.
Beijos e não te esqueças: poupa água!

Querido neto,
Quando penso em água (sem ser nas coisas fundamentais que mencionaste e que, por isso, não vale a pena repetir) há duas frases que recordo sempre. Uma, dita por uma personagem de um filme do Fellini: “Em momentos de grande inspiração só bebo água”; outra, de um grande amigo dos meus tios, que ia muito lá a casa e dizia constantemente: “Quando a água é pura e cristalina, não há nada como um copo de vinho”.
E tu agora escolhes a que preferes…
Mas a água tem um grande lugar na minha vida… Já não falo nas minhas praias da Ericeira e da Costa Nova—duas grandes paixões, desde criança – mas de outro tipo de águas, a saber, as termas.
Não sei se hoje ainda vai muita gente para as termas, mas no meu tempo de criança as termas de Caldelas, mais exactamente o Hotel da Bela Vista, eram o nosso destino todos os anos, assim que chegava o verão. Lá em minha casa ninguém fazia tratamento, mas íamos todos para acompanhar o Zé Carvalho, que era como se fosse irmão do meu tio.
Eu adorava ir para Caldelas. Super-protegida em casa, nunca percebi por que é que assim que lá chegávamos a minha tia me largava e eu só a encontrava às refeições. Era uma alegria. Eu adorava a Rosalina, uma das empregadas do hotel, e andava sempre com ela: e à noite era ela que me ia deitar, e que de vez em quando ia ao quarto ver se eu estava bem.
Para além disso, eu era muito popular.

O hotel organizava todos os anos uma grande festa, que revertia a favor da Casa do Gaiato. Os jovens e as crianças é que faziam a festa: cantavam, dançavam, recitavam poesia, faziam pequenos sketches teatrais. E os pais, tios e amigos desembolsavam uma pipa de massa para que os seus meninos não fizessem má figura.
Eu rendia muito dinheiro.
Eu tinha para aí seis anos – e cantava, dançava, sabia poemas de cor. Então o gerente do hotel ligava para nossa casa para saber quando é que nós chegávamos, para marcar a festa para essa data.
Eu adorava aquilo. Lembro-me de uma vez me terem dado outra miúda para recitarmos um poema em diálogo. Eram duas meninas uma rica e com uma boneca muito cara, e uma pobre, com uma boneca de papelão. E a pobre começava a pedir para brincar com a outra boneca, mas a rica não deixava, porque a boneca de papelão estava mal vestida, e a outra explicava que ela é que tinha feito o fato, e seguia-se:
“Menina rica– E quanto vale?”
“Menina Pobre — Um milhão!/ Não há dinheiro que valha/ o suor de quem trabalha/ com alma e com coração.”
Só que a outra miúda, que fazia de rica, era um bocado burra. E aquilo saiu-lhe:
“E quanto vale um milhão?”
E eu dei-lhe um estalo e saí de cena.
Acho que foi o ano em que a Casa do Gaiato arrecadou mais dinheiro—até da família da miúda burra, que foram os primeiros a rir e a achar que eu tinha feito muito bem.
Passei as minhas férias em Caldelas dos 6 aos 15 anos.
E foi tudo tão importante para mim, que um dos meus livros—“Águas de Verão”—é de tudo isso que fala.

Anos depois fui para o Luso—mas aí já era casada, e foi tudo diferente. Eu ia buscar os miúdos da escola e lia-lhes histórias, e passeava com eles e eles contavam-me histórias da terra. Ainda hoje há muitas, já casadas e com filhos, que se correspondem comigo. E há um jornalista, o Miguel Midões, que fazia parte desse grupo, com quem ainda estive há dois anos.
Tive a sorte de os meus dois maridos gostarem muito do Luso, e de continuarmos a ir para lá.
Agora, com o confinamento e a pandemia, não sei como aquilo estará, tanto em Caldelas como no Luso.
Tenho muitas saudades, mas também tenho muito receio de lá voltar.
Levas a avó quando esta Pandemia terminar?
Fica bem—e poupa água!
Outros capítulos aqui: “Diário de uma avó e de um neto em casa Confinados”
