30ª Crónica de “PÓ DE ARROZ E JANELINHA”. Iniciativa de Alice Vieira e Manuela Niza.
Claro, tinha de dar para o torto…
Quando tudo parecia tão bem encaminhado—já me via a ir para a Ericeira com os amigos, a não parar em casa, a pôr até um cadeado aqui nesta janela, para não me lembrar dos meses em que vi o mundo só através dela—voltou tudo atrás.
Porque nós não somos capazes de cumprir ordens.
Porque nós pensamos sempre que as coisas más só acontecem aos outros.
Porque quando podemos estar com 10 pessoas—estamos logo com cem ou mil.
E lá regressámos a um meio confinamento (esperemos que não volte a ser total) com medidas restritivas paras as lojas e cafés…
Pronto.
Mais uns tempos em casa. Mais uns livritos a ler para passar o tempo.
Mesmo assim ainda vou à janela e vejo a Rosa chegar a casa com um tipo que eu não conheço. Meu Deus, já pareço as bisbilhoteiras cá do prédio.
Que me interessa a mim quem a Rosa namora ou deixa de namorar…Já tem mais que idade para levar a vida que quer. Era o que faltava ter de me dar explicações.
Mas gostei de ver que ele cumpria as regras de distanciamento, que lhe acenou com a mão e que não entrou em casa. Pelo menos é cuidadoso em relação ao vírus.
Às vezes penso que devia dar mais atenção à Rosa. Claro que não foi por minha causa que o pai dela foi morto – e já falámos ambos sobre isso- mas essas coisas acabam sempre por nos aproximar.
Queria deixar a janela aberta por causa do calor—mas já sei que vinha para aí um enxame de melgas (será enxame que se diz? Não tenho pachorra para ir ver, se for, tudo bem, se não for, que se lixem as melgas)—e eu acordava todo cheio de borbulhas.
Abro só por momentos o ar condicionado—que é um perigo para a minha asma e para o meu bolso…– e vou à estante buscar um livro. Para dizer a verdade não me apetece muito ler e pego no primeiro que me vem à mão.
Abro-o. E logo na primeira página um nº de telemóvel.
Desatei a rir que parecia maluco. Ao tempo que não me lembrava daquelas cenas de há tantos anos…E até pensei que o livro tivesse ficado em casa da Patrícia.
E, sentado no sofá, lembrei-me de cada momento desses dias.
Tenho de confessar: apesar de eu ser jornalista e de ler tudo e mais alguma coisa, apesar de a Patrícia também ler muito, nenhum dos meus filhos era dado a grandes leituras… Liam o que era obrigatório na escola—e mesmo assim…
Eu ralhava, a Patrícia ralhava—mas nada feito. Aquilo eram as consolas, e coisas assim—livros, “népia”.
Até que um dia eu descobri um livro em cima da mesa de cabeceira do Rafael .
“As Naus” do Lobo Antunes.
Caramba, o rapaz estava a progredir… E logo o Lobo Antunes, nada fácil de ler para um principiante nessas lides. Esfreguei as mãos de contente mas nem disse nada à Patrícia, com medo que ela lhe perguntasse alguma coisa e fosse tudo por água abaixo.
E durante dias e dias “As Naus “ lá estavam.
Um dia achei que ele já tinha tido mais que tempo de o ler—e como sou muito arrumado com os meus livros (deve ser a única coisa…), coloquei-o na estante.
–Ó pai, sabes de “As Naus” do Lobo Antunes?—uma voz meio zangada.
Fui logo buscá-lo e entreguei-lhe
Ele enfiou-se no quarto até à hora de jantar.
Eu estava mesmo contente.
E aquilo repetiu-se várias vezes: eu arrumava-o e ele pedia-mo.
Até que um dia não resisti:
“Estás mesmo a gostar das “Naus”…
“De quê, pai?”
“Das Naus”, o livro do Lobo Antunes… É muito bom, não é?…”
“Das Naus??? Ah, deste livro”..
E olhou para ele. E desatou a rir.
“Ah, se é bom não sei, nem me interessa. Mas é que foi aqui nesta página que eu tomei nota do telemóvel de uma namorada e ainda não o sei de cor…”
Acho que no próximo dia em que estiver com o Rafael lho vou entregar. Preciosidades destas não se podem perder.
PÓ DE ARROZ E JANELINHA: Os folhetins da Alice Vieira e da Manuela Niza para se manterem ocupadas durante quarentena.
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