“Aniversário RTP”

“Diário de uma avó e de um neto em casa…Confinados”

Segunda-feira – 15 de março 2021

Querida avó,

Que lindo dia primaveril o de hoje, que assinala o primeiro dia de “Desconfinamento a conta-gotas”.

Veremos o que vai dar. Já ninguém aguenta estar fechado em casa e o comércio já não aguenta estar encerrado. Se for tudo feito com as regras necessárias a coisa pode correr bem. Mas, pelo que tenho visto nestes últimos dias, anda imensa gente na rua sem máscara.

Percebo que com a melhoria do tempo a máscara seja cada vez mais incómoda. No entanto, a abolição do uso de máscara não faz de todo parte das regras de desconfinamento. Bem pelo contrário!.Se as pessoas não se protegerem corremos o risco de tudo voltar atrás. E isso NINGUEM quer!

Como sabes sou madrugador.

Hoje, tal como nos outros dias, assisto aos vários blocos noticiosos. Como não é de admirar todos falam do mesmo: do regresso às aulas, creches, pré-escolar e 1.º ciclo, cabeleireiros, manicures e similares reabrem, bem como centros de tatuagem e bodypiercing (sério???); livrarias (finalmente), comércio automóvel e mediação imobiliária; bibliotecas e arquivos. O comércio não essencial pode ainda retomar atividade ao postigo ou através de serviço de recolha à porta de artigos adquiridos previamente.

Que canseira! Todos os canais (RTP, SIC, TVI, SIC Noticias, RTP3, TVI24 e CMTV) a dar o mesmo, horas e horas seguidas.

Eu sei que é a boa nova do dia, que não há assuntos mais importantes… Mas alguém retém a informação? Alguém consegue estar um dia inteiro a ver o mesmo?

Agora lembrei-me da altura em que só tínhamos dois canais. Já sei que me vais dizer “sou tão velha que sou do tempo em que só tínhamos rádio”.

Por falar nisso, a RTP celebrou recentemente 64 anos e ainda não falamos disso neste nosso “Diário”.

As gerações mais novas têm o mundo todo na mão através de um telemóvel. Mas para os da minha geração, o mundo entrava-nos em casa através da televisão, quando a televisão era a preto e branco, Quando pensar em televisão a cores era uma coisa que só acontecia em sonhos. Tal como ter um comando para mudar de canal. O que nos valia era que apenas existiam dois canais de televisão. Imagina se fosse hoje, com mais de duzentos canais (para quem tem tv por cabo, claro).

Enquanto estou a escrever este capítulo recordo os meus 4 avós (de sangue). Os meus avós paternos nunca tiveram televisão, por opção. Os avós maternos nem luz eléctrica tinham. Mas recordo-me de um dia terem vindo a casa dos meus pais, e olharem para a televisão como nós olhamos para os marcianos.

Recordo-me da minha avó olhar para a parte de trás da televisão para ver se percebia como as pessoas entravam para dentro daquela caixa.

Lembro-me da avó, com o seu lenço na cabeça, muito indignada com a minha mãe por se despir “com aquelas pessoas a olharem” e ter conversas com “aquelas pessoas a ouvirem”.

A televisão, nomeadamente a RTP ,vai ser um tema que vamos abordar frequentemente neste nosso “Diário”. Não fosses tu ter escrito várias coisas para televisão, o teu marido (o avô Mário Castrim) ter sido o crítico “mais temido” da televisão, e eu um apaixonado por televisão.

Mas não posso terminar este capítulo sem fazer mais algumas referências “à nossa” RTP.

Desde pequenos que aprendemos a relativizar o tempo com a RTP. Lembras-te de quando existiam falhas na emissão e aparecia no ecrã dois desenhos com a frase: ”Pedimos desculpa por esta interrupção. O programa segue dentro de momentos”? Quando hoje me dizem: “É só um momento” as minhas memórias viajam sempre até esse cartaz. Nunca sabíamos se eram interrupções de segundos ou minutos.

As memórias que tenho das manhãs de domingo com a “Eucaristia Dominical” o “ 70×7” ou a “TV Rural” apresentado pelo engenheiro Sousa Veloso. Tantas vezes que a minha mãe me fala do Zip- Zip e do “Se bem me lembro” que recordámos recentemente neste nosso “Diário”. Tenho uma vaga ideia de programas como “ A Visita da Cornélia” , os programas da Maria de Lourdes Modesto, e tantos outros.

Mas as minhas memórias mais presentes são sem dúvida a partir de 1980, quando começam, finalmente, as emissões a cores.

Ainda me recordo de anteriormente colocarmos uns acrílicos ridículos à frente do monitor, para dar alguma cor à televisão.

Lembro-me de ter visto a cores os saudosos “Jogos sem Fronteiras”, sempre apresentados pelo Eládio Clímaco, recordo-me do “Fungagá da Bicharada”, da cadela Lassie, das vidas desgraçadas da Heidi e do Marco (se fosse agora estavam todos no psicólogo…). Que saudades do Vasco Granja e da “sua” Pantera Ror de Rosa, do Calimero, dos Marretas, o Fernando Peça e a celebre frase: “ e esta heim?” Quem não se recorda das magníficas receitas do Chef Silva ou da Filipa Vacondeus ?

Vamos voltar a estes temas mais tarde. Promessa de neto!

Agora ficava aqui o dia inteiro só a recordar programas e apresentadores.

Ficava, mas não posso! A partir de hoje já podemos beber café ao postigo e estou capaz de cometer uma loucura para tomar um café de postigo.

Sabes que, tal como tu, sou viciado em café. Dois meses a beber café de capsula e de cafeteira italiana, já não aguento mais!

Vou fazer uma ronda de postigos para repor a cafeina.

( Ah, e já alguma vez te disse que andei na telescola? )

Bjs

Querido neto

Antes de mais, é preciso não esquecer—o que muita gente esquecia.—que até 1974 os programas de televisão eram ferozmente cortados pela censura. Foram tempos muito complicados para os diretores de programas de então, embora eles fossem todos da confiança do regime, claro.

Então vamos lá falar da RTP.

Nós não fomos dos primeiros a ter televisão. A minha tia não estava interessada, tinha a rádio, estava suficientemente informada.

Mas depois as amigas dela já tinham, e ela sempre foi do género “se elas têm, eu também quero”.

Então uma televisão fez a sua entrada triunfal na nossa sala de fumo. Nem tu (nem as pessoas que viveram em casas normais) sabem o que era “a sala de fumo”. Só existia em casas enormes, com muitas criadas. A minha tia tinha quatro criadas!! A cozinheira, a que lavava e engomava a roupa, a que servia à mesa, e a que abria a porta e estava sempre disponível para tudo o que ela queria. E éramos só 3 pessoas: eu, ela e o meu tio. A sala de fumo ficava na continuação da (enorme) sala de jantar, e era para onde as pessoas iam beber o café, ou um cálice de Porto. E fumar, claro.

Bom, mas as minhas histórias lá de casa ficam para outra vez.

Então a televisão estava na sala de fumo, havia filas de cadeiras, como nos cinemas, a minha tia, o meu tio e eu ficávamos na fila da frente, as criadas na fila do fundo. E só podiam aparecer quando o serviço estivesse feito.

Eu já era crescidota, preferia estar ao telefone com o meu namorado. E assim, com eles de olhos e ouvidos vidrados no écran, podíamos conversar à vontade, e o tempo que nos apetecesse.

Claro que, diante da televisão, ninguém podia falar. E até 1968, só havia um canal. Quando chegou a RTP-2, se a minha tia queria mudar de canal, mandava uma das criadas, evidentemente. Onde é que ainda vinham os comandos.

Lembro-me que às 4ªfeiras era sempre “Noite de Teatro”—o que popularizou a expressão “gosto de teatro quando ele é bom”, que era sempre o que o público respondia nos inquéritos que se faziam nessa altura.

O meu tio tinha um irmão mais novo, que vivia na aldeia com a mulher. Sentavam-se os dois num banco, e ali ficavam a tarde inteira sem fazer nada, sem falar com ninguém, a olhar para o ar. Um dia trouxeram-nos a nossa casa para verem televisão, e ele passou o tempo todo a perguntar ao irmão “ó Jaquim, como é que eles entraram lá para dentro? E conseguem sair?” E nunca se convenceram de que ninguém estava dentro daquela caixa.

Muita gente que não tinha televisão ia vê-la aos cafés. Eu adorava ir ao café ver os programas. Porque ali podia-se falar,  e toda a gente falava, e batia palmas, era uma alegria. (A minha dependência dos cafés começou muito cedo)

Depois os tempos mudaram, tudo mudou.

Escrevi muitos programas para a televisão, nos jornais onde trabalhei escrevi muito sobre televisão, casei com um crítico de televisão.

Mas disso falo depois.

Fica bem—e confinado, claro, a seguir sempre os conselhos da tua avó!

Outros capítulos aqui: “Diário de uma avó e de um neto em casa Confinados”