“Acho que nestes meses já fiz centenas de quilómetros…”

22º Capitulo de “PÓ DE ARROZ E JANELINHA”. Iniciativa de Alice Vieira e Manuela Niza.

Acho que nestes meses  já fiz centenas de quilómetros, para cá e para lá no corredor.

A uma dada altura o corredor range, e não há dia nenhum em que eu não me lembre de mim, a tremer de medo, deitado numa enxerga num vão de escada da loja do meu primeiro patrão.

 Eu tinha 10 anos, tinha acabado a 4ª classe, e os meus pais tinham-me mandado  para Lisboa, para trabalhar numa drogaria que pertencia a um senhor lá da terra, que tinha feito o favor de me aceitar. Naquele tempo era assim. E de madrugada o meu patrão descia as escadas para ver se estava tudo em ordem, e  a escada rangia, rangia, e quando eu ouvia aquele barulho só pensava que eram ladrões, e que me iam matar.

Hoje rio-me. Mas naquela altura puxava o lençol para cima da cabeça e chorava até não poder mais. Nem me quero lembrar. E depois vêm aqueles idiotas dizer que no tempo do Salazar é que era bom… Então não era.

Mas agora, dias e dias e dias fechado em casa, este é o mínimo exercício que posso fazer.

Depois paro uns minutos, venho até à janela, estou um bocado a olhar lá para fora, a rua está silenciosa, mas eu sonho que os meus netos vêm ver-me, que já estão a dobrar a esquina, o Lourenço aos berros, “Avô, queres vir com a gente ao jardim?”, o Dinis muito mais calado, ao lado do irmão, a olhar para a janela mas sem dizer nada.  Nunca vi dois gémeos  tão diferentes.

Depois eu descia, íamos até ao parque, que não ficava longe, baloiços, escorregas, labirintos, era um ver se te avias.

Do que tenho mais saudades, nesta quarentena, é de não os ver, de não os beijar e abraçar. Saudades de os ter cá em casa. A Perpétua não gosta muito que eles cá fiquem. Adora os netos, claro, mas está sempre a dizer “nós criámos os nossos filhos, agora eles que criem os deles.” E às vezes eu até concordava, a Teresa nem sequer perguntava se eles podiam vir para cá, muito simplesmente telefonava a avisar que os vinha trazer de tarde e que só voltava a buscá-los na semana seguinte.

Mas quem me dera agora que isso acontecesse.

O Dinis sempre muito sério, sempre a pensar em coisas muito sérias…

Às vezes, acordava de madrugada e chamava-me:

“Avô…”

“Não vás lá” resmungava a Perpétua, ensonada, virando-se para o outro lado.

Mas eu ia sempre. O Lourenço dormia numa das camas e nunca acordava.

O Dinis estava já sentado na cama ao lado da do irmão e, assim que me via entrar, dizia:

“ Avô, estive a pinsar…”

Pronto. Tinha que ser. Quando ele “pinsava”,  a coisa era séria. Então eu sentava-me na beira da cama.

“ Diz lá…”

“Avô, quando tu eras pequenino, onde é que eu estava?”

“Então, quando eu era pequeno, tu ainda não tinhas nascido…”

“Está bem, avô, mas quando eu ainda não tinha nascido, onde é que eu estava?”

Era nesta altura que eu dizia, “é muito tarde, vamos lá dormir, amanhã a gente conversa…”

E as perguntas eram todas deste género. E o que é que se responde a isto?

O Lourenço, esse só quer jogar futebol no corredor. E a Perpétua, que ainda é mais maluca com os netos do que eu, embora não o queira admitir, uns meses antes desta pandemia, comprou um cesto de basket na loja dos chineses e pregou-o no corredor, na porta que dá para o quarto deles—para se treinarem a encestar.

Agora até dá jeito porque, pelo meio dos quilómetros que faço no corredor, de vez em quando páro  e tento encestar umas bolas. Admito: não tenho jeito nenhum, mas sempre é exercício.

Por isso é que a Luisa está sempre a pôr defeitos nesta casa.

 E nós ralados.

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