“Diário de uma avó e de um neto…Desconfinados”
quinta-feira, 15 de abril 2021
Querida avó,
Nos últimos anos muito se tem ouvido, e escrito, sobre a “Saloia da Malveira”.
Mas hoje apetece-me falar da verdadeira “Saloia da Malveira” , a que partiu há precisamente 25 anos.
Lembro-me perfeitamente de ver a Beatriz Costa a contar histórias da sua vida na televisão. As gerações mais novas não fazem ideia de quem foi Beatriz Costa, mas os mais velhos recordam perfeitamente esta figura que não deve ser esquecida.
Ficará para sempre conhecida como a “Menina da Franja”, uma moda à qual aderiu para se estrear no cinema, (e à qual também as tuas tias te fizeram aderir, mesmo que então não tivesses voto na matéria )
Beatriz da Conceição (seu nome de batismo) deu os primeiros passos no mundo artístico no teatro de revista, quando subiu ao palco do teatro Éden (sim, o hotel Éden nos Restauradores, antes de ser convertido em hotel foi um magnifico Cineteatro). Beatriz da Conceição sonhava conquistar os palcos. Um ano depois o fundador do Parque Mayer dava-lhe o nome artístico de Beatriz Costa, e ela estreia-se no Rio de Janeiro, recebendo os aplausos do público. Aparece pela primeira vez no cinema em 1927. Tudo isto há quase um século.
A década de 1930 foi para Beatriz Costa a década do reconhecimento e da consagração. Para além de muitos outros trabalhos, foi nos filmes “A Canção de Lisboa” e “A Aldeia da Roupa Branca” que fez os papéis da sua vida. São muitos os que ainda têm bem presentes na memória as eternas costureira Alice e lavadeira Gracinda. Personagens não muito diferentes da Beatriz nascida em Mafra, trazida ainda em criança pela mãe para Lisboa, e que só aprendeu a ler e a escrever aos 13 anos.
A partir daí, a busca pelo conhecimento nunca mais teve fim. Em 1960 terminou a carreira de representação e começou a dedicar-se à sua alfabetização e a escrever autobiografias, com a ajuda de nomes como Almada Negreiros e Aquilino Ribeiro.
Recordo-me de a ver (na TV) a falar do facto de ter optado por viver no Hotel Tivoli (onde veio a morrer a 15 de abril 1996) e do seu desejo de ser sepultada no cemitério da Malveira.
Em Mafra, para além de um Auditório Municipal com o seu nome, existe ainda o Museu da “Diva Saloia”, onde está exposto o legado que a atriz Beatriz Costa doou ao povo da Malveira.
Foi vontade de Beatriz Costa que muitos dos objetos de que se fazia rodear no seu quarto, no Hotel Tivoli, em Lisboa, fossem doados ao povo da Malveira. Foi inaugurado pela atriz no dia 10 de agosto de 1993. Este espólio está hoje na Casa de Cultura da Malveira. Foi conferida uma nova dinâmica à presente exposição ilustrativa, sob o título Beatriz Costa: a diva saloia.
Quando for levar-te à Ericeira, podemos parar em Mafra para irmos espreitar este testemunho do amor de Beatriz Costa pelas suas gentes. Uma vez que até foste sua amiga, irás gostar de ver alguns objetos pessoais, recordações de viagens, ofertas de amigos e admiradores de todas as esferas, com especial destaque para as suas coleções de bonecas e burrinhos, assim como por uma substancial parte documental (fotografias, cartas, recortes da imprensa, entre outros.
Agora fiquei com imensa vontade de ir à Malveira comer umas trouxas.
Mete na agenda.
Agora que estamos desconfinados ninguém nos agarra.
Mas sempre com muito cuidado, claro!
Bjs
Querido neto
Para mim, saloia da malveira só há uma, a Beatriz Costa e mais nenhuma.
A primeira vez que vi a Beatriz Costa, eu tinha seis anos e ela entrava numa revista do Parque Mayer. Eu adorava vê-la, batia muitas palmas, saltava na cadeira a rir—mas do que eu gostava mais era quando a revista acabava, a cortina caía, e ela aparecia de lado, por detrás da cortina, com um penteado igual ao meu, a acenar com a mão e a dizer “adeus, meninos, até amanhã!” Até porque eu pensava que aquele “adeus, meninos” era para nós, a miudagem que assistia ao espetáculo.
Depois ela desapareceu dos palcos e eu nunca mais me lembrei dela.
Até um dia, princípio dos anos 70, em que eu estava nos Armazéns do Chiado com a minha filha pequenina. A Catarina nem era muito de birras mas, naquele dia, embicou que queria que eu lhe comprasse uma boneca que estava numa das lojas. Eu disse-lhe que não, tentei sairmos daquela loja, mas ela não arredava pé, berrava, berrava, que queria a boneca. Eu já não sabia o que fazer da minha via quando, de repente, vejo aparecer a Beatriz Costa, ali a fazer compras. Chega-se junto de nós e disse:
“Coitadinha da menina! Quer aquela boneca, quer? Então eu dou-lhe a boneca!”
Eu ainda disse que não, que ela tinha de aprender que não podia ter tudo o que queria, mas ela não desistia:
“Coitadinha da menina! Como te chamas? Catarina? O´Catarininha, anda comigo que eu dou-te a boneca!”
E lá foram as duas.
A minha filha ainda hoje tem essa boneca.
E, algum tempo depois, o jornal mandou-me fazer uma entrevista à Beatriz Costa. Fui ao Hotel Tivoli, e lá ficámos na conversa uma data de tempo, como duas velhas amigas.
E não, não foi ela que optou por viver no Hotel Tivoli, como dizes. Um grande amigo dela, uma pessoa muito conhecida, de que não vou dizer o nome mas a quem ela sempre chamou, mesmo durante as nossas conversas, o “Sr. Almirante” ( e não, não era o Almirante Américo Tomás! Nem para isso ele tinha jeito..,)—que lhe pagou a estadia naquele hotel, com tudo incluído, como se fosse mesmo a sua casa, até ao fim da sua vida.
O quarto não era muito grande e por isso, de vez em quando, uma das sobrinhas dela ia lá buscar uma data de coisas–livros, joias, prendas que lhe ofereciam, para o quarto ficar com um pouco mais de espaço. Tudo isso deve estar hoje no Museu.
Às vezes apareciam pessoas lá no hotel para a verem. Mas o empregado da recepção sabia muito bem aquelas com quem ela queria estar, e aquelas com quem não queria. E às vezes ela podia ser muito malcriada para aqueles de quem ela não gostava e que interrompiam a sua leitura, ou o seu descanso.
Eu tinha sempre entrada mas, mesmo assim, antes de sair do jornal e ir passar o resto da tarde com ela, ligava-lhe primeiro. Sentávamo-nos sempre ao fundo do bar, donde se podia ver o salão inteiro.
Fiz-lhe muitas entrevistas, nem sei quantas. E ela fazia sempre uma coisa que mais ninguém fazia (e que eu aprendi com ela): ligava-me para o jornal a dizer que tinha gostado muito, e escrevia um cartão ao diretor a dizer que aquela tinha sido uma grande entrevista e que a pessoa que a tinha feito era uma grande jornalista.
Lia muito (lia todos os meus livros e dava-me a sua opinião) e escrevia muito bem. Era muito amiga do Jorge Amado e da Zélia Gattai (amigos que herdei dela), e dava-se com grandes escritores, pintores, etc)
Até que em 1975 decidiu escrever um livro de memórias :“Sem Papas na Língua”, a que se seguiram mais quatro : “Quando os Vascos eram Santanas” (1977) ,“Mulheres sem Fronteiras” (1981), “Nos Cornos da Vida” (1984), e “Eles e Eu “ (1990)
Nunca se esqueceu do dia dos meus anos, nem do dia dos anos do meu marido e dos meus filhos. Escrevia-nos muitos postais donde quer que estivesse—e no dia do casamento do meu filho mandou-lhe uma lindíssima colcha de crochet.
Pronto, aí tens a história da verdadeira, da única, da genuína Saloia da Malveira
Ah, e já fui vacinada. E está tudo bem.
Outros capítulos aqui: “Diário de uma avó e de um neto … Desconfinados”