“Viva o 5 de Outubro”

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“Viva o 5 de Outubro”

Crónica publicada no Jornal de Mafra

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VIVA O 5 DE OUTUBRO!!!

ALICE VIEIRA

 

Os tios que me criaram eram ferozmente republicanos.

As histórias que me contavam tinham pouco a ver com fadas e príncipes, não se passavam em reinos de magia com castelos de altas torres, e todas começavam e acabavam sempre nas barricadas da Rotunda, no dia 5 de Outubro de 1910.

E, para que tudo ganhasse ainda mais força, era então que eles arregaçavam as calças até ao joelho, e exibiam as cicatrizes desse dia, como medalhas ganhas no campo de batalha.

Eles tinham lá estado.

E, antes da Rotunda, eles tinham aguentado tudo: a incerteza de uma revolução que tantas vezes estivera para sair para a rua e tantas vezes acabara por falhar porque havia sempre alguma coisa a impedir, ou alguém que, à última da hora, roía a corda.

Lisboa era um barril de pólvora, todos os dias rebentavam bombas, todos os dias a polícia atirava com gente para os calabouços do Limoeiro.

Tudo era secreto e tudo se sabia.

Os meus tios eram muito velhos, e falavam de tudo isto como se tudo tivesse acontecido na véspera. Mostravam-me jornais antigos, e sobretudo passavam-me para as mãos números de uma revista muito antiga, chamada a “Illustração Portugueza”.

1909-08-30 - Ilustração Portuguesa 184 pág 1

E eu ficava pasmada a olhar para aquelas fotografias, sem perceber como é que uma revolução podia ter sido feita por homens de fato completo, colete e gravata, corrente de ouro a prender o relógio, e chapéu na cabeça.

Na Rotunda lá estão eles, apoiados à arma, e às vezes nem isso, apenas com ar de quem está à espera que aconteça alguma coisa.

As páginas da “Illustração Portugueza” foram os meus livros de fadas.

E, de cada vez que chegava o 5 de Outubro, íamos todos em vitoriosa romagem até à estátua do Dr. António José de Almeida, que até era perto de nossa casa. Então aí, às cicatrizes e às recordações da Rotunda, somava-se o facto heróico de o meu avô materno ter sido amigo do Dr. António José de Almeida. Para mim eram os dois ilustres desconhecidos, nunca vira nem um nem outro, mas um deles, pelo menos, tinha direito a estátua.

E durante muitos anos, para mim uma revolução era aquilo: grupos de homens anafados, de fartos bigodes, em trajo de passeio com uma arma ao lado, com direito a fotografia nas revistas e, mais tarde, a uma estátua no centro da cidade.

Até que os anos foram passando—e  o romantismo também.

Veio o Estado Novo, veio a repressão, vieram as prisões, veio a censura, vieram as denúncias, veio a PIDE—e, pelo menos nas romagens que se faziam ao Alto de São João e nos discursos junto da estátua do Dr. António José de Almeida, no dia comemorativo da República, tentava-se falar de liberdade, e de um futuro diferente pelo qual todos nós ansiávamos.

Claro que os meus tios já tinham morrido há muito, mas eu lembro-me de nunca ter falhado um encontro desses—e lembro-me muito bem das cargas policiais que normalmente os acompanhavam, e das prisões que vinham a seguir, e da repressão que aumentava no dia a dia.

Só quem não viveu nada disto –ou quem faz de cego e surdo e nunca ouviu falar—é que pode ter aceite que um bando de…– de quê? Miúdos? Estúpidos? Analfabetos? …–tenha decidido suprimir o feriado de 5 de outubro.

Houve eleições esta semana. Não discuto quem ganhou ou quem perdeu.

Todos sabemos que há problemas gravíssimos que têm de ser resolvidos.

Pois sabemos.

Mas se o feriado do 5 de Outubro voltasse a ser reposto… tenho a certeza de que era capaz de haver um ligeiro sorriso na boca de quem não tem mesmo vontade nenhuma de sorrir.

Até os meus tios, estejam onde estiverem, seriam capazes de encarar melhor a eternidade que os espera.

 

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A publicação destas cónicas é uma parceria entre os Retratos Contados e o Jornal de Mafra.

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