Retratos Contados do Chef José Avillez

O meu avô Domingos nasceu em 1914, já em plena Primeira Guerra Mundial, quando fez 4 anos a Guerra termina com 22 Milhões de mortes. Logo depois, uma pandemia global, a gripe espanhola, mata mais de 40 Milhões de pessoas. O meu avô tinha 6 anos nessa altura.
Com 15 anos sobrevive à maior crise económica de sempre. Que provocou milhares de falências, desemprego sem precedentes e muitas pessoas morreram à fome no mundo inteiro. Quando tinha 19 anos os nazis chegam ao poder e com 25 anos começa a Segunda Grande Guerra mundial, que acaba quando o meu avô tem 31 anos e com 60 Milhões de mortes.
Até aos 61 anos viveu ainda a Guerra da Coreia, a Guerra do Vietnam e do ultramar onde teve um filho a combater nos comandos. O meu querido Tio Luís.
Casou com a minha avó Babette, teve 7 filhos. Viu nascer mais de 20 netos e 40 bisnetos. Foi campeão nacional de ténis e trabalhou no campo até aos 85 anos. Poeta e Engenheiro agrónomo. Uma das pessoas mais trabalhadoras, lutadoras, honestas e inspiradoras que alguma vez conheci. Viveu feliz até aos 96 anos de idade depois de mais de 60 anos de casado.

Avô, fomos apanhados desprevenidos com esta pandemia e às vezes não sabemos o que fazer, reclamamos demasiado, muitas vezes sem razão.
Hoje reabro o Belcanto e inspirado no Avô e na sua força e resiliência, sei que vai correr tudo bem.

Um abraço com muitas Saudades, do seu neto, Zé”

“Retratos Contados do José Avillez”

 

José Avillez 3

 

Retratos Contados (R.C): Os Retratos Contados apresentam-se como um projeto único e diferenciador uma vez que nos focamos numa área diferente do habitual. O nosso objetivo é falar de ligações entre avós e netos. A importância que estes tiveram na vida dos netos e vice-versa. O que acha de um projeto com estas características?

José Avilez (J.A): Acho interessante, de facto! Porque o que nós somos hoje é fruto de tudo o que vivemos desde que nascemos e também do que recebemos dos nossos antepassados. Por isso, acho interessante perceber a ligação e as pontes que existem.

 

R.C.: Quando olha para o nosso país, como vê a população mais velha?

J.A.: Vejo-os mais pobres do que noutros países. Em Espanha, por exemplo, gosto de ver que as pessoas mais velhas divertem-se e saem até muito tarde… aqui, em Portugal, menos. Mas, olho com grande carinho e com grande estima. Dou-me bem com pessoas mais velhas porque têm uma calma que me tranquiliza e que me dá confiança. É fundamental aprender com os mais velhos.

 

“O Conde de Avilez trouxe o primeiro carro para Portugal”

 

R.C: Na sua árvore genealógica existem familiares mais antigos, como o primeiro Conde de Burnay, o primeiro Visconde de Reguengo, o primeiro Conde de Avilez

Quando era pequeno ouvia histórias sobre esses familiares?

J.A: Ouvi algumas sim, mas sei pouco. Tenho menos ligação à família Burnay, que era só do lado da minha avó paterna. O Conde de Avilez sei que trouxe o primeiro carro para Portugal e que logo na primeira viagem ou no primeiro passeio de carro atropelou alguém e não sei muito mais.

 

R.C: Nem sequer mais tarde? Não teve nenhuma curiosidade em fazer alguma pesquisa sobre esses familiares?

J.A: Não, não tive, tenho curiosidade de saber mais sobre pessoas das gerações mais recentes. Não tenho tanta curiosidade pelas ligações à nobreza.

 

“A minha avó viveu até aos oitenta e tal anos, mas teve uma vida muito difícil, viu morrer os filhos todos”

 

R.C: Que importância tiveram os avós na sua vida?

J.A: Os meus avós foram muito importantes. Infelizmente, nunca conheci o meu avô paterno. Tenho muita pena, mas morreu cedo. A minha avó viveu até aos oitenta e tal anos, mas teve uma vida muito difícil, viu morrer os filhos todos. Mas era uma pessoa muito engraçada, ainda recentemente estive a reler alguns diários que deixou. Era muito divertida e no meio de todas as tristezas que passou, era uma pessoa cheia de força. Os meus avós do lado materno, felizmente, viveram até bastante tarde. O meu avô morreu com noventa e seis e a minha avó com noventa e quatro. Eram os grandes pilares de uma grande família com sete filhos, trinta netos e vinte e tal bisnetos. Chegaram a fazer setenta anos de casados. São pessoas das quais sempre me orgulhei imenso e das que tirei muito partido. Aprendi muito com eles! Sempre fomos uma família muito próxima. Todos os domingos almoçávamos e lanchávamos em casa deles. O lanche era para a família praticamente toda. Sempre deram muito apoio à minha mãe.

 

José Avillez 2

 

“A minha avó Babete deu uma dinâmica diferente a uma família muito tradicional, que era a família Avillez.”

 

R.C: Os diários deixados pela sua avó, devem ser uma herança muito enriquecedora que a sua avó deixou para os netos e que mais tarde há-de deixar para os seus filhos.

O papel dos avós foi determinante para se tornar no homem que é hoje?

J.A: Claro que sim. Penso que em termos profissionais não havia grande ligação. Em termos profissionais a ligação maior que tenho é com o meu avô paterno, que nunca conheci, que esteve ligado a hotéis, restaurantes e ao casino, etc. Mas como não sou só cozinheiro, enquanto pessoa tenho a certeza que os meus avós tiveram alguma influência. Eram pessoas com valores morais muito marcados e com uma grande fé. A minha avó (apesar de na altura não ser habitual) criou um negócio próprio: teve uma fábrica de acessórios, roupas, calçado e cintos e viajava muito para ver novas colecções. O meu avô era engenheiro agrónomo e trabalhou até aos oitenta e cinco anos. Por isso, são pessoas por quem sinto um grande orgulho.

 

R.C: Essa avó já era muito há frente no tempo! Onde é que a sua avó implementou esse negócio?

J.A: Em Santarém. A minha avó chamava-se Babete, o que tem alguma graça também porque está ligado ao famoso livro e filme, “A festa de Babete”, que é possivelmente um dos melhores relatos gastronómicos de sempre. A minha bisavó era inglesa, mas a minha avó já nasceu em Portugal. Apesar de não ser habitual na altura, a minha avó Babete foi federada em salto em altura. Naquele tempo era um desporto mais de homens, pelo menos em Portugal. Tanto o desporto como a criação do negócio eram característicos de um universo mais masculino. A minha avó Babete deu uma dinâmica diferente a uma família muito tradicional, que era a família Avillez.

 

Com a irmã

José Avillez com a irmã

 

” O amor que os meus avós sentiam um pelo outro inspirou toda a família e continua a inspirar”

 

R.C: Neste caso, acabou por herdar algumas características dos seus avós.

J.A: Sim, mas não na parte desportiva. O meu avô foi campeão nacional de ténis durante três ou quatro anos e sempre quis que algum filho ou neto seguissem as suas pisadas, mas isso não aconteceu. O meu avô era uma pessoa muito interessante. Fazia versos para tudo, escrevia muito. Mas, o que inspirou toda a família (e continua a inspirar), era o amor que os meus avós sentiam um pelo outro. Morreram com 8 meses de diferença, havia de facto uma cumplicidade enorme entre os dois.

 

R.C: Quais foram os seus maiores desafios como neto?

J.A: Do lado do meu pai éramos apenas quatro netos. Do outro lado, trinta, por isso, eu acho que tentamos sempre conquistar um lugar. Os meus primeiros passos na cozinha foram dados em casa da minha avó materna a fazer as saladas nos almoços de Domingo. Foi também onde tive mais contacto com a cozinha tradicional. Havia uma horta onde muitas vezes íamos apanhar legumes para o almoço ou para o jantar e depois tínhamos coelhos, galinhas. Todo este lado muito rústico, esta ligação ao campo, apesar de estarmos no centro de Cascais, era muito interessante. O maior desafio enquanto crianças é crescermos, ganharmos a nossa identidade e afirmarmo-nos como pessoas.

 

José Avillez - Pais

Os pais do José Avillez

“Um amor de verdade. A minha Mãe e o meu Pai começaram a namorar com 14 e 16 anos respetivamente. Casaram ao fim de 11 anos de namoro. 9 anos depois o meu Pai morreu, com 36 anos. Hoje quase 34 anos passados a minha mãe ainda é completamente apaixonada pelo meu Pai. Uma história de amor triste mas inspiradora”.

R.C: Era frequente esses 30 primos estares todos juntos frequentemente?

J.A: Sim, nos lanches de Domingo o meu avô contava sempre as pessoas que por lá passavam e chegavam a passar quarenta/cinquenta pessoas, entre primos, filhos, genros e noras. Ao almoço chegámos a estar cento e dez pessoas. Hoje, só bisnetos já são quarenta.

 

R.C: E os seus filhos também devem sentir uma grande empolgação por tanta família junta.

J.A: Sim, é muita gente e há muita gente da idade deles. Por isso, é sempre divertido.

 

R.C: Então acabava por ter alguma presença na cozinha dos seus avós?

J.A: Sim, ao início, por graça. Mas lembro-me que o meu avô nos seus versos, às vezes dizia por brincadeira que foi assim que eu comecei a cozinhar e, de facto, foi.

 

R.C: Esses versos ainda existem?

J.A: Sim, ainda existem. O meu avô chegou a publicar um livro que se chamava “As coisas de Gosmindo “ que era Domingos ao contrário, o meu avô chamava-se Domingos. É um livro com os versos todos, são cerca de quinhentas, o que é bastante para uma publicação caseira/familiar.

 

R.C: No fundo acabou por ser publicado para as pessoas que faziam mais sentido, a família.

J.A: Sim e nós vamos recordando pois o avô escrevia versos para todas as ocasiões especiais. E escrevia versos especialmente bonitos para a minha avó, declarações de amor. Depois, lia esses versos nos anos dela ou nos anos de casado, mas os versos tinham sempre um toque de humor, eram muito engraçados. O meu avô era muito católico, sempre muito correto, mas contava anedotas com imensa graça. Lembro-me de contar uma anedota que dizia qualquer coisa como “Com os pregos Alcobia, o gajo não fugia “ referindo-se a Jesus Cristo, para alguém que ia todos os dias à missa tinha um grande sentido de humo e sabia separar as coisas.

 

José Avillez - com pai e irmã

José Avillez com o Pai e a Irmã

 

“Sempre que o meu filho faz um desenho na escola e assina Zé Ereira tanto para mim, como para a minha mãe é especial porque há uma ligação ao meu pai.”

 

R.C: Tem dois filhos, o José Francisco com seis anos e o Martinho com quatro. O que mudou na vida da sua mãe e dos seus sogros a partir do momento em que se  tornaram avós?

J.A: No caso dos meus sogros, o José Francisco foi o primeiro neto. A minha mãe já tinha um neto, filho da minha irmã. Pergunta difícil porque não consigo responder na primeira pessoa, mas acho que ser avô é especial. É ser pai pela segunda vez, sem as responsabilidades de educação dos filhos. É mimar, cuidar, brincar… tenho a certeza que foi um momento importante para a vida deles. Penso que com os netos as pessoas ficam mais afectuosas, acho que senti isso na minha mãe e nos meus sogros.

 

R.C: A parte dos pais educarem e os avós deseducarem aplica-se nos seus filhos?

J.A: Pontualmente, mas sem drama.

 

R.C: O que o enternece mais quando observa a relação dos seus filhos com os avós?

J.A: Quando um adulto brinca com uma criança faz “figura de parvo” no bom sentido. Julgo que a pessoa ter a despreocupação e a confiança para poder fazer isso enternece. Ver a minha mãe muito contente com os netos, o meu filho chama-se José Francisco, mas tem os apelidos dos Ereira, apesar de eu ter ficado Avillez, (eu sou Ereira no ultimo nome, que era o nome do meu pai) e também isso enternece a minha mãe, ver a continuidade do nome do meu pai. Sempre que o meu filho faz um desenho na escola e assina Zé Ereira tanto para mim, como para a minha mãe é especial porque há uma ligação ao meu pai. Acho que acima de tudo é isso e também o prazer de os ver crescer.

 

R.C: E são avós muito presentes? Acabam por ser uma presença fundamental no vosso dia-a-dia?

J.A: São, até mais a minha sogra pela proximidade porque vive mesmo ao nosso lado. A minha mãe menos, mas quando está vive os netos na sua plenitude e isso é muito importante.

 

Capturar

José Avillez com a mulher Sofia e os filhos Francisco e Martinho 

R.C: Tenta transmitir aos seus filhos, os valores que herdou dos seus avós?

J.A: Sim, acho que sim. Não directamente pois os valores que recebi foram-me transmitidos pelos meus pais. Mas sem duvida que, em especial do lado da minha mãe, os meus avós são a grande referência da família. Para ter uma ideia, temos um grupo no WhatsApp que se chama ”Babete e Domingos“, o nome da minha avó e do meu avô. Este grupo é constituído por todos os primos e alguns dos tios que têm as novas tecnologias. Devemos ser cerca de quarenta ou cinquenta pessoas e comunicamos todos os dias, damos os parabéns a quem faz anos e mais. Por isso, há esta ligação e todos estamos conscientes de que os meus avós são os pilares que ainda hoje suportam a família toda.

 

“Penso sempre que se o meu avô tivesse durado mais um ano  teria adorado conhecer o bisneto.”

 

R.C: No fundo é essa herança que vai passando também aos seus filhos. A herança relacionada com o amor dos seus avós …

J.A: Das coisas que mais lamento, também na sequência de não ter conhecido o meu avô, é que o meu filho por dois ou três meses não tenha conhecido o meu avô. O meu avô morreu quando a minha mulher ainda estava à espera de bebé. Penso sempre que se o meu avô tivesse durado mais um ano (embora dificilmente o meu filho se fosse recordar) teria adorado conhecer o bisneto. Tínhamos uma relação muito especial e por isso tenho pena, mas é a vida.

 

R.C: Ver os seus filhos seguirem os seus passos e um dia vê-los a tomarem conta do que tem sido construído é um sonho para si?

J.A: Não, de todo. Honestamente até talvez preferisse que não o fizessem. Se eles escolherem isto, terei muito gosto e darei todo o meu apoio, mas o quero mesmo é que escolham o que quiserem. Não os quero condicionar em nada, quero que sigam os meus passos nos valores da vida, pelo menos nos melhores que eu tenho, mas não tanto a nível profissional, acho que eles devem fazer o que quiserem desde que sejam felizes.

Muito mais para espreitarem aqui: Retratos Contados e Restaurante José Avillez