“AS NOSSAS PÁTRIAS”

“AS NOSSAS PÁTRIAS”

Crónica publicada no Jornal de Mafra

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AS NOSSAS PÁTRIAS

 

O telefone tocou de manhã cedo e eu, que me levanto cedíssimo, nesta semana tinha decidido levantar-me às horas normais da maioria do pessoal que está reformado, para ver se me recompunha completamente da gripe. O visor do telemóvel dava-me o número do meu amigo Phillippe-Henri, de Bordéus, e que há anos não me ligava.

De passagem por Lisboa, era só mesmo para dizer bom dia e que toda a gente mandava beijinhos e que todos morriam de saudades minhas.

Telefonema rápido—ele está sempre de passagem para outro país—mas o suficiente para eu ficar acordada, a pensar em todos esses anos que trabalhei com ele, e em como podemos ter tantas pátrias diferentes neste mundo.

A primeira vez que cheguei a Bourg-sur-Gironde, as velhas olhavam-me, desconfiadas, através das cortinas das janelas. E há poucas coisas tão terríveis como uma francesa velha e desconfiada, a olhar-nos para lá das cortinas de uma janela.

Bourg-sur-Gironde é uma minúscula aldeia na região de Bordéus, no estuário formado pelo encontro dos rios Dordonha e Garona, perdida no meio de vinhas e castelos…

Estava integrada num grupo de escritores de vários países, numa organização do Conselho da Europa (chefiada pelo Phillippe Henri) que tinham, como único pretexto para ali estarem, o facto de pertencerem a cidades com estuário. O Tejo tinha sido, por assim dizer, o meu passaporte para ali chegar.

Como sempre acontece nestas coisas, fizemos a visita de circunstância, fomos dizer umas coisas à escola, cada um falou do seu estuário e do seu rio—e voltámos para casa.

Mas, vá-se lá saber porquê, a escola engraçou comigo—e convidaram-me a voltar no ano seguinte, para acompanhar uma classe e levá-la a entender um bocadinho melhor que coisa era essa da Europa e, em especial, Portugal. O trabalho prolongou-se no ano seguinte, e  no outro, e no outro–e por aí fora.

Devo dizer que Bourg-sur-Gironde, para lá da sua beleza, e do seu estuário magnífico—não tem rigorosamente mais nada.

Dez dias enfiada em Bourg-sur-Gironde, repetidos anos a fio, sempre no mês de Março, faz de mim, com toda a certeza, a pessoa que melhor conhece o lugar.

Os anos podem passar que nada ali se modifica.

Todos os anos, assim que chegava, descia ao porto e metia por uns caminhos de terra batida que iam dar a uma velha casa arruinada. Diante do portão havia uma pedra, redonda e enorme. Todos os anos tirava uma fotografia à pedra diante do portão. Todas rigorosamente iguais…

Eu ficava no Hotel des Trois Lys, e sempre no mesmo quarto.

De resto, o hotel só tinha três quartos, e nunca me lembro de o ver com a lotação esgotada. Também nunca me lembro de lá ver mais ninguém a não ser a Maryse, a dona –e também a cozinheira, e também a arrumadora dos quartos, e tudo o mais que fosse necessário fazer—e que me passava logo a chave da porta da rua para as mãos, porque ela tinha a sua vida e nem estava sempre no hotel.

Pouco a pouco as velhas foram ficando menos desconfiadas, já havia mesmo uma ou outra que me dava os bons dias e sorria.

No café do porto só havia homens. Às vezes eu sentia-me no meio de um filme francês dos anos 40, e enquanto bebia o café tinha mesmo a certeza de ver aparecer a Michelle Morgan e o Jean Gabin ,que me lembrava de ver em miúda, em cenários idênticos.

Um ano, já não me lembro porquê, cheguei mais tarde, Abril ia já a meio.

A Maryse estava excitadíssima, já tinha perguntado não sei quantas vezes “à monsieur le proviseur” da escola quando é que eu chegava, e só me dizia que estava tudo pronto, e que se eu faltasse toda a gente ia ter muita pena!

Não percebo a causa de tanta excitação, mas a Maryse nem explica, nem me deixa ir pôr a mala ao quarto, “pas le temps!” repete, e eu tenho por momentos a sensação de que ela se transformou no Chapeleiro da “Alice no País das Maravilhas”, sempre a olhar para o relógio e sempre atrasado para coisa nenhuma.

Fecha a porta do hotel e empurra-me rua abaixo, e há por toda a aldeia um fortíssimo cheiro a incenso—e é então que, ao cimo da rua, avisto um cortejo que desce em direcção à igreja, e a Maryse finalmente explica o que se passa.

–“L´Abbé” Garrick vai dizer a sua primeira missa! E todos queríamos muito que estivesse cá para assistir!

Lembro-me que o Padre Garrick era muito jovem, com vestes brancas que esvoaçavam ao vento daquele domingo de Abril. Tinha óculos de lentes muito graduadas, espalhava incenso pelo caminho, sorria muito para toda a gente.

A missa nunca mais acabava, cânticos a seguir a cânticos, e um sermão infindável—até porque o pobre do Padre Garrick gaguejava um bocado…

Há anos que não vou a Bourg-sur-Gironde. A classe que eu acompanhava mudou de escola, o meu trabalho estava concluído.

Mas tenho muitas saudades. Das compotas da Maryse. Do estuário. Do café do porto. Da pedra . Das velhas para lá dos vidros das janelas. Do gaguejar do padre.

E quando ouço a palavra “pátria”, é de tudo isto que (também) me lembro.

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A publicação destas cónicas é uma parceria entre os Retratos Contados e o Jornal de Mafra.

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