As Cheias

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“As Cheias”

Crónica publicada no Jornal de Mafra a 2 de Novembro de 2015

Vai passar muito tempo antes que possamos esquecer as imagens que nestes últimos dias temos visto na televisão sobre as cheias em Albufeira. Que não aconteceram porque Deus se zangou, como um ministro que lá foi tentou explicar— mas porque os homens parece que  não aprendem nada.  Há anos que os mesmos erros se cometem (que têm a ver com o desordenamento paisagístico, a ocupação do litoral, a drenagem das ribeiras, as construções em leitos de cheias, etc…) há anos que as mesmas desgraças acontecem.

E olhando estas imagens lembro-me de outras, ainda bem mais terríveis, que se calhar já poucos recordam.

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Em Novembro de 1967, Lisboa foi assolada por chuvas torrenciais que provocaram das maiores cheias de que há memória.

Em Novembro de 1967 eu tinha 24 anos, e estava a descobrir essa  extraordinária aventura do jornalismo.

E de repente entrava-me pelos olhos dentro uma catástrofe que tinha a ver com miséria, com um completo desrespeito pelas leis naturais, com um território perfeitamente desordenado e caótico –  e com uma censura tão cerrada que nos queria impedir de dizer sobre isto uma palavra que fosse.

Nas cheias de 1967, morreram 700 pessoas.

Nas cheias de 1967 aldeias inteiras, na periferia de Lisboa, desapareceram do mapa.

A aldeia de Quintas foi uma delas: eu estava no que ainda dias antes tinha sido um lugar povoado – e que agora, diante dos meus olhos, era apenas um lamaçal a perder de vista.

As casas, as ruas, tudo tinha sido levado pela violência das águas. Enfiávamos as mãos naquele mar viscoso e cinzento, e as nossas mãos vinham carregadas de animais mortos.

Os jornalistas tentavam a todo o custo saber os nomes de quem tinha morrido, para contrapor às informações oficiais que garantiam que não tinha morrido ninguém, ou muito poucos.

Era num tempo em que ainda nem se sonhava com telemóveis. E quanto a telefones, apenas uma cabine pública funcionava e por aí  se iam transmitindo as notícias para as redacções.

E foi então que a censura começou a perceber que seria perigoso deixar que as pessoas soubessem a dimensão exacta do que estava a acontecer.

Porque essa seria a prova da miséria que existia mesmo às portas de Lisboa, das terríveis condições em que muita gente vivia, com casas de construção tão precária que eram incapazes de aguentar o embate das águas, gente amontoada em bairros clandestinos erguidos em ribeiras e leitos de cheia.

O que estava a acontecer era a prova da miséria que alastrava no país – e isso a ditadura não permitia que fosse conhecido.

E a censura carregou com mão de ferro, cortando notícias, distorcendo informações, impedindo os números certos de serem divulgados: o meu amigo e camarada de profissão João Paulo Guerra, então a trabalhar no Rádio Clube Português, recebeu a meio da tarde uma chamada dos serviços da censura dizendo

“A partir desta hora, não morre mais ninguém.”

E o meu querido Pedro Alvim (grande jornalista, grande poeta e sobretudo grande amigo, infelizmente já falecido e pouco recordado) escreveu uma das mais belas crónicas do jornalismo português, tentando fazer um telefonema da cabine para o “Diário de Lisboa” e, à luz dos fósforos (porque a electricidade estava cortada)  ler o nome de todos os mortos, mas mesmo de todos, e não falhar nenhum, e não errar nenhum, e não se enganar, e não deixar que os fósforos acabassem antes de ele ler o último nome.

Tenho a certeza absoluta de que essas cheias de 1967 foram, para muitos, a revelação da verdadeira face do país em que vivíamos.

Claro que agora o país é outro.

Mas estas inundações que cíclicamente nos atacam são a prova de que se continua a desrespeitar a natureza, a deixar construir edifícios em locais de perigo eminente  que, à primeira chuvada mais forte, podem levar a situações irremediáveis.

No litoral a situação também não é melhor: continuamente se rouba espaço ao mar–e “aquilo que ao mar se rouba, o mar vem sempre buscar”, como uma vez me disse um pescador de Buarcos.

Os mais novos podem pensar que as cheias de 1967 foram na pré-história.

Para mim, foram ontem.

E parece que não aprendemos muito.

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A publicação destas cónicas é uma parceria entre os Retratos Contados e o Jornal de Mafra.

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